O espetáculo natural da bacia do rio Negro, uma das regiões de maior biodiversidade do planeta, acaba de ganhar oficialmente um novo protagonista. Trata-se da menor arraia (ou raia, as duas formas são corretas) de água doce que se conhece. Mais de 160 anos após ter sido coletada e desenhada pelo naturalista britânico Alfred Russell Wallace, a arraia cururu finalmente recebeu seu nome científico: Potamotrygon wallacei – uma justa homenagem ao codescobridor do mecanismo da seleção natural, que divide o posto com Charles Darwin. 

Apesar de a arraia cururu ser muito exportada pela indústria de peixes ornamentais, e de ter sido citada ou ilustrada inúmeras vezes desde o século 19 tanto na literatura científica quanto nos manuais de aquarismo, a espécie não possuía nome científico.

“A primeira vez que vi um exemplar em 1990, ainda na graduação, achei que era uma nova espécie, pelo tamanho pequeno dos machos adultos e seu colorido único. Foi só a partir de 1997 que comecei a estudá-la com mais afinco”, explica o ictiólogo Marcelo Carvalho, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o primeiro autor do trabalho publicado no Zootaxa.

A pesquisa conta com o apoio da FAPESP por meio de um Auxílio Jovem Pesquisador e três Auxílios Regulares: “Evolução molecular de regiões regulatórias de genes HOX associados com a morfologia da nadadeira de peixes, com especial ênfase em Chondrichthyes“; “Estudo comparativo da morfologia do aparelho alimentar em raias da ordem Myliobatiformes (Chondrichthyes: Batoidea)“; e “Revisão taxonômica da família Gymnuridae (Chondrichthyes: Myliobatoidei)“.

A arraia cururu habita as águas escuras dos igapós (a área de floresta inundada) e igarapés do Médio Rio Negro, na região de Barcelos, Estado do Amazonas. “A cururu é assim chamada pela população ribeirinha devido às manchas do seu dorso, que lembram aquelas do sapo-cururu (gênero Rhinella)”, diz Carvalho.

“Ela é muito associada com as folhas que caem das árvores no igapó. Em meio às folhas fica perfeitamente camuflada”, complementa a oceanógrafa Maria Lúcia Góes de Araújo, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, coautora do trabalho e responsável pelo estudo da biologia do peixe.

“A cururu é bem pequena. Até onde sabemos é a menor espécie do gênero Potamotrygon. O maior exemplar que encontramos tem a largura do disco (medida do corpo) de 30 cm”, diz Carvalho. “Há arraias de água doce que são enormes. Certa vez capturamos uma maior que o capô de uma caminhonete.”

A arraia cururu foi ilegalmente exportada de 1990 a 1997. A legalidade das exportações ocorreu em 1998. “Para exportá-la, o comerciante precisa de um nome científico. Daí terem sempre colocado nomes errados”, revela Carvalho. A cururu geralmente sai do Brasil com o nome de arraia porco-espinho (Potamotrygon histrix), uma espécie da bacia dos rios Paraná e Paraguai.

Atualmente em Recife, Araújo trabalhou 18 anos em Manaus, nas universidades Federal e Estadual do Amazonas. Até 2011, ela acompanhou todos os anos a coleta das arraias em Barcelos. Seu objetivo era estudar a biologia do animal, agora descrita no presente estudo, mas também fazer um trabalho de conscientização junto aos pescadores sobre quais as épocas de pesca e quais espécimes coletar.

A captura acontece entre os meses de fevereiro e julho, sendo proibida nos meses de reprodução, que vai de agosto a janeiro. A coleta só é sustentável porque é proibida a captura de fêmeas e de machos adultos. As arraias são peixes com gestação interna e mantêm os embriões no útero, como os mamíferos, pelo período de três a seis meses, dependendo da espécie. Elas não depositam suas ovas na água como acontece com a maioria dos peixes, mas parem filhotes que são uma miniatura dos pais, e algumas espécies fazem cuidado parental.

Comércio legal e ilegal

Foi baseado nos estudos do potencial reprodutivo e demográfico feitos por especialistas como Araújo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) estabeleceu em 2003 uma cota anual de exportação. Na última revisão, em 2009, a cota de exportação era de 5 mil indivíduos da cururu válida apenas para os estados do Amazonas e Pará.

De acordo com a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), em 2006 o Brasil exportou legalmente 17 mil espécimes de arraia de água doce, sendo que o comércio ilegal alcançava de 25 mil a 30 mil espécimes. No mesmo período, o Peru respondia pela venda de 15 mil espécimes. Desde então, a participação da Colômbia cresceu muito, mas ainda não há dados oficiais sobre suas vendas.

“O mercado de peixes ornamentais é sujeito a modismos”, diz Araújo. “Atualmente as espécies mais exportadas são as arraias negras (Potamotrygon leopoldi e Potamotrygon henlei) do rio Xingu, no Pará. Elas são maiores e mais vistosas.”

Ainda assim, a cururu continua sendo a arraia de água doce com a maior cota de exportação. “Apesar de ela não ser a espécie mais policromática nem a mais bonita, entre todas as espécies é a menor e a mais rústica”, diz Araújo. Por rústica, a especialista quer dizer: mais resistente ao transporte.

Na coleta, os pescadores escolhem os peixes jovens, com diâmetro de apenas 6 cm. Os animais são transportados em caixas plásticas com até seis indivíduos. Ao longo do trajeto, a água precisa ser trocada e sua temperatura mantida constante. São 30 horas de barco até Manaus e de 12 a 24 horas de lá até o destino final na Europa ou na Ásia.

“Como nem todas as empresas de Manaus e Belém que exportam peixes ornamentais têm a estrutura necessária, a mortalidade dos peixes no transporte varia muito”, diz Araújo. “Há espécies das quais se perde metade dos animais no transporte, o que é fatal para o negócio, pois o importador só paga pelos bichos que chegam vivos ao destino final. A cururu é muito resistente. Sua mortalidade é de apenas 2% a 5%, extremamente baixa.”

O fato de a cururu ser exportada ainda muito pequena e ser muito resistente tem o seu lado problemático. Os peixes vão para aquários de todo o mundo, onde continuam crescendo. A espécie vive cerca de 10 anos e atinge em média 25 cm, mas há registros de indivíduos com até 31 cm. “Quando um espécime fica muito grande para o aquário, sempre há o risco de o aquarista resolver descartar o animal no meio ambiente”, diz Carvalho.

Em 2009 foi revelada a existência de arraias-olho-de-pavão (Potamotrygon motoro), uma espécie que ocorre em toda a bacia amazônica, vivendo e se reproduzindo em liberdade num reservatório de água em Cingapura. “Esta é uma ameaça à fauna local, pois se trata de peixes predadores. É por isso que a Austrália e diversos estados americanos proíbem a importação de arraias.”

As arraias de água doce são exclusivas da América do Sul. Elas evoluíram a partir de um ancestral marinho que penetrou o interior do continente através de invasões marinhas que aconteceram no período Eoceno, há 50 milhões de anos, até possivelmente o Mioceno, há 20 milhões de anos. Quando a língua de mar que penetrava a Amazônia recuou, as espécies de água salgada tiveram que se adaptar ao ambiente de água doce para não desaparecer. Esse foi o caso das arraias, dos botos amazônicos e do peixe-boi.

Wallace, 160 anos depois

Em 2015, já havia sido descrita outra espécie de peixe, um jacundá, originalmente coletado por Wallace (leia mais em http://agencia.fapesp.br/22458). Decorridos 160 anos da expedição de Alfred Russell Wallace (1823 –1913) pelo rio Negro, o legado daquele grande naturalista continua a nos surpreender. Entre 1850 e 1852, Wallace subiu o rio Negro para reunir uma grande coleção de espécimes da flora e fauna locais. Sua intenção era vender a coleção quando retornasse à Grã-Bretanha, como meio de financiar suas investigações científicas ao redor do mundo.

Não foi o que aconteceu. Em 12 de julho de 1852, Russell embarcou em Manaus no brigue Helen rumo à Inglaterra. Após 26 dias de travessia, um incêndio obrigou a tripulação a abandonar o navio. Wallace só teve tempo de salvar seus diários e os rascunhos dos peixes que coletou no rio Negro. A tripulação permaneceu dez dias à deriva, até ser resgatada por um navio proveniente de Cuba.

A grande aventura amazônica de Alfred Wallace acabou em tragédia. Sua coleção se perdeu no mar. Salvaram-se os seus desenhos, que acabaram depositados no Museu de História Natural, em Londres. Em 2002, a zoóloga Mônica de Toledo-Piza Ragazzo, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, reuniu os desenhos conservados em Londres e os publicou no livro Peixes do Rio Negro (Edusp). A ilustração da arraia cururu é a prancha de número 4, na página 71. Nas palavras de Wallace, o espécime descrito tinha “colorido marrom claro, borda avermelhada. Olhos amarelos, pupila preta. Marcas pretas, um tanto claras (…) Espinho da cauda um tanto longo serrilhado. Os exemplares mais jovens têm as marcas mais delicadas e tênues”.

O artigo A new species of Neotropical freshwater stingray (Chondrichthyes: Potamotrygonidae) from the Rio Negro, Amazonas, Brazil: the smallest species of Potamotrygon, de Marcelo R. de Carvalho e outros, publicado na Zootaxa, pode ser lido em http://biotaxa.org/Zootaxa/article/view/zootaxa.4107.4.5.