O governo interino de Michel Temer sinalizou que poderá rever e revogar demarcações de Terras Indígenas encaminhadas recentemente pela administração de Dilma Rousseff. Na avaliação de Maurício Guetta e Márcio Santilli, assessores do ISA, qualquer revogação desses atos é inconstitucional. Leia a seguir o artigo de opinião.
Enquanto o mundo volta suas atenções à superação da crise climática e socioambiental, além da redução das desigualdades sociais, uma das maiores bancadas do Congresso continua com seu ímpeto insaciável de buscar favorecimentos a seus interesses corporativos, em detrimento do conjunto da sociedade e da Constituição Federal.
Nesse sentido, os ruralistas apresentaram ao presidente interino Michel Temer o documento intitulado “Pauta Positiva – biênio 2016/2017”, pelo qual solicitaram a “revisão das recentes demarcações de áreas indígenas/quilombolas”, além da adoção de uma série de medidas contrárias ao interesse público, como a readmissão de formas de trabalho análogas à escravidão, o enfraquecimento do licenciamento ambiental e a exploração desenfreada da biodiversidade brasileira.
No caso dos povos indígenas, como já decidiu reiteradas vezes o Supremo Tribunal Federal (STF), a sua sobrevivência física e cultural depende diretamente do reconhecimento de seus direitos constitucionais territoriais. Daí ter a Constituição lhes outorgado não apenas o direito à sua organização social, costumes, línguas e tradições, mas principalmente “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, determinando à União o dever de demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.
Tal dever da União acabou se tornando alvo de espúrias negociatas políticas capitaneadas pela bancada ruralista, gerando a paralisação das demarcações de terras indígenas em nome de uma suposta governabilidade. Também por essa razão, mas não apenas, o governo Dilma Rousseff foi o que menos terras indígenas demarcou desde o advento do texto constitucional de 1988. Foram dezenas de processos que ficaram represados por seguidos anos de omissão administrativa, apesar de estarem prontos para decisão conclusiva, com todas as fases cumpridas de acordo com a legislação, inclusive com amplos e aprofundados laudos científicos e atendimento ao contraditório.
Após longo período de chantagem bem sucedida, recentemente alguns desses processos finalmente saíram da gaveta, o que suscitou reações histéricas dos ruralistas, incluindo a mencionada demanda de revisão dos atos demarcatórios.
Apesar disso, por força da Constituição, os atos que reconhecem direitos territoriais indígenas não podem ser simplesmente revogados pelo Poder Executivo, visto que a jurisprudência do STF “já assentou que a demarcação de terras indígenas é um ato declaratório, que se limita a reconhecer direitos imemoriais que vieram a ser chancelados pela própria Constituição. O que cabe à União, portanto, não é escolher onde haverá terras indígenas, mas apenas demarcar as áreas que atendam aos critérios constitucionais, valendo-se, para tanto, de estudos técnicos”, conforme decisão do ministro Luís Roberto Barroso, de 2013.
Não se trata, portanto, de atos administrativos pautados por mero juízo discricionário de conveniência e oportunidade, mas de atos estritamente vinculados – que a administração pública é obrigada a executar – decorrentes de mero cumprimento de dever imposto pela Constituição ao Poder Público. Por certo, eventual revogação desses atos, além de constituir retrocesso administrativo sem precedentes, certamente ensejará enfáticas reações do Ministério Público Federal, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e de organizações indigenistas, como o Instituto Socioambiental (ISA), inclusive mediante ações na Justiça. O ISA já encaminhou ao presidente interino, aos ministros da Justiça e da Casa Civil um ofício deixando claros os argumentos levantados acima.
Ao cabo, a demanda ruralista configura verdadeira “casca de banana”, visto que colocaria o presidente interino e seu ministro da Justiça como praticantes diretos de atos inconstitucionais, expondo o governo a críticas da opinião pública nacional e internacional.
Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, e Mauricio Guetta, advogado do ISA
Fonte: ISA
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