No Brasil são faladas, pelo menos, 181 línguas indígenas. Mas esse número já foi bem maior – estima-se que, antes da chegada dos europeus, mais de 1.500 línguas fossem faladas no território que viria a se tornar o país, sendo gradativamente extintas ao longo de cinco séculos. Para compartilhar estratégias de pesquisa que ampliem o conhecimento sobre esse patrimônio linguístico e cultural e ajudem a preservá-lo, mais de 100 cientistas de 10 países estão reunidos desde 21 de março até 2 de abril, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), durante a Escola São Paulo de Ciência Avançada Putting Fieldwork on Indigenous Languages to New Uses, realizada com o apoio da FAPESP.                                                   

A língua materna de Mutua Mehinaku, descendente do povo Kuikuro, é uma das que correm risco de desaparecer. Nascido na região do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, Mehinaku tem mestrado em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estuda o pluralismo linguístico no Alto Xingu. De acordo com ele, 700 índios falam kuikuro, sendo que os critérios internacionais determinam que uma língua corre risco de extinção se falada por menos de mil pessoas.

“Se comparada a outras línguas indígenas, faladas por algumas dezenas de pessoas e com poucos estudos a respeito, a nossa está relativamente segura. Mas, quando se trata de um patrimônio tão importante e sensível quanto a sua cultura, é preciso se cercar de cuidados para que ele não siga ameaçado. Por isso as pesquisas na área são tão importantes”, disse durante a ESPCA.

Para Angel Humberto Corbera Mori, professor do IEL, pesquisador de línguas arawak, faladas no Parque Xingu, e editor do periódico Línguas Indígenas Americanas (Liames), pode-se dizer que o risco de extinção se estende a praticamente todas as outras línguas indígenas faladas no Brasil.

“De 181 línguas, pelo menos 115 são faladas por menos de mil pessoas. Algumas poucas, como tikuna, língua nativa falada por um povo que habita territórios do Brasil, do Peru e da Colômbia, e terena, falada na região do Mato Grosso do Sul, são compartilhadas por populações entre 20 mil e 30 mil pessoas, mas a grande maioria tem apenas algumas dezenas de falantes. Povos indígenas do Nordeste, como os potiguares e cariris, por exemplo, não falam mais sua língua e, por esse motivo, mesmo ainda praticando seus costumes ancestrais, não são vistos pela sociedade como sendo índios”, contou.

De acordo com Corbera Mori, a cada duas semanas pelo menos uma língua desaparece no mundo. No Brasil, recentemente, morreu a última falante da língua indígena xipaia, em Altamira, no Pará, e apenas dois anciões falam guató, vivendo em lugares diferentes e que não se comunicam entre si devido a distância. Para o pesquisador, a extinção dessas línguas representa também o desaparecimento de diversos conhecimentos acumulados ao longo de séculos.

“Não é uma riqueza material, como o ouro ou o diamante, mas, quanto mais diversidade cultural um país possui, mais rico ele é em conhecimento. Os índios mais velhos dominam toda uma diversidade de nomes de pássaros, cobras, plantas que são usadas na medicina tradicional, entre outras informações que seriam de grande utilidade para a compreensão e a conservação da natureza. A perda desse conhecimento da fauna e da flora é também uma perda científica”, destacou.

Nesse sentido, ressaltou Maria Filomena Spatti Sandalo, também professora do IEL e coordenadora do evento, “compartilhar metodologias e experiências de pesquisa bem-sucedidas com línguas nativas de diferentes regiões do planeta pode contribuir para avançar no conhecimento sobre aquelas faladas no Brasil e na América do Sul”.

Neologismos contra a “caraibização”

Se no período da colonização as línguas indígenas desapareciam junto com seus povos, dizimados por doenças trazidas pelos colonizadores e pelo extermínio direto, hoje o maior risco que enfrentam é o que o povo Kuikuro chama de katsagaihakijü: a “caraibização” ou “transformação em caraíba”, em referência ao termo indígena usado para designar o colonizador europeu.

“Isso se dá pelo contato direto com o idioma português, que ocorre não só por uma exposição natural, mas pela falta de proteção dos territórios indígenas, pela invasão por madeireiros, fazendeiros, narcotraficantes e até mesmo na escola, já que os jovens têm mais interesse em aprender o português do que a língua dos seus pais e avós”, explica Mori.

De acordo com Mehinaku, foi essa influência sobre sua língua nativa que o motivou a se aprofundar no estudo do kuikuro.

“Inicialmente eu observava o trabalho de linguistas na minha tribo, dedicados ao estudo desse processo, mas eles não estarão ali para sempre. Então, passei a me aprofundar na língua que falamos para entender como o surgimento dessas palavras estrangeiras poderia comprometê-la. É diferente um idioma amplamente falado sofrer influência de outro. Quando somente algumas centenas falam essa língua, o risco de essa influência contribuir para sua extinção é grande”, avalia.

O pesquisador se dedicou, então, a o que seu povo chama de tetsualü – em kuikuro, qualquer mistura. No mestrado, o termo foi utilizado fazendo referência aos processos de transformação da língua e das histórias individuais e coletivas das tribos.

A “mistura” alto-xinguana foi investigada por Mehinaku seguindo dois eixos: um do amálgama, a partir do estudo de casamentos interétnicos e do multilinguismo presente nos cantos rituais, e outro da diferenciação, sobre como surgiram as línguas dos diversos povos do mundo e emergiram as diferenças dialetais que distinguem as etnias Karib do Alto Xingu – hoje, por sua vez, em vias de se misturar.

Segundo ele, o princípio do tetsualü ganhou novo sentido e outra complexidade com a entrada do português nas línguas e na vida das aldeias do Alto Xingu, levando ao surgimento de neologismos em kuikuro, como o uso da palavra pagaka para se referir a “barraca”, pasia para “bacia” e pisa para “pinça”.

“Esses neologismos sofreram influência do português, mas são kuikuro. É a língua se reinventando e permanecendo viva”, destacou.

Os dados apresentados na dissertação de mestrado de Mehinaku e que serviram de base empírica para o trabalho vieram, em parte, dos conhecimentos nativos do autor, que pertence a duas das etnias do Alto Xingu: Kuikuro por parte da mãe e Mehinaku do pai, povo que fala a língua arawak. Também foram feitas entrevistas e coletas de depoimentos, discursos e narrativas na aldeia kuikuro de Ipatse.

Filogenética turbinada

Em outra frente de pesquisa, cientistas trabalham no desvendamento do passado das línguas indígenas para entender como elas se formaram e, como consequência, ajudar no desenvolvimento de estratégias para sua preservação.

Giuseppe Longobardi, do Departamento de Linguística da Universidade de York, na Inglaterra, apresentou no IEL o novo método por ele desenvolvido para comparar, com a ajuda de softwares, sistemas sintáticos de línguas diferentes, estabelecendo eventuais parentescos entre elas: o Parametric Comparison Method (PCM).

“O método histórico-comparativo tradicional, utilizado desde o século 19, permitiu à pesquisa na Europa retroceder até a língua protoindo-europeia, o ancestral comum das línguas indo-europeias. Nas Américas, onde as línguas indígenas não possuem registros escritos significativos e prevalece a tradição oral, ainda não foi possível ir tão longe, havendo apenas noções das famílias linguísticas, mas não muito claras quanto aos parentescos entre elas”, contou.

A filogenética, metodologia usada para a análise evolutiva das línguas, já contava com o auxílio de softwares que relacionam palavras para determinar parentescos linguísticos, mas o recurso é limitado por conta do que os pesquisadores chamam dos empréstimos – como a palavra “deletar”, adaptada do inglês para o português. Isso pode fazer com que famílias sem conexão sejam vistas como parentes sem que tenham, de fato, essa relação.

O método PCM realiza comparações entre as gramáticas das línguas, mais estáveis que as palavras isoladas. A gramática de uma língua trata de sua morfologia, o estudo da estrutura, da formação e da classificação das palavras, e da sintaxe, a disposição delas na frase e a das frases no discurso, assim como as relações lógicas entre elas.

“O pressuposto do método é que os parâmetros sintáticos são mais adequados do que outros para fins de comparação linguística e reconstrução histórica, pois são capazes de fornecer correspondências inequívocas e medidas objetivas. Experiências com 26 variedades indo-europeias contemporâneas comprovaram que o PCM é capaz de identificar corretamente as relações genealógicas de línguas modernas”, afirmou.

O método também foi experimentado no IEL com uma língua guaikuru e outra karib, ambas de tradição oral, comprovando-se eficiente mesmo na ausência de registros escritos. Para compensar essa falta, os pesquisadores desenvolveram um questionário de gramática que auxilia na coleta dos dados gramaticais diretamente com os índios, muitos deles professores das línguas em suas tribos.

A aplicação do formulário vem sendo demonstrada em sessões de hands on na programação da ESPCA Putting Fieldwork on Indigenous Languages to New Uses, que conta também com cursos sobre línguas e culturas do Brasil, anotação sintática e corpora orais digitais, métodos experimentais e computacionais em Fonologia e Morfologia e experimentações semântica, entre outros.

Mais informações em sites.google.com/site/pfilnu.

FONTE: Diego Freire | Agência FAPESP 

http://agencia.fapesp.br/pesquisas_podem_ajudar_a_salvar_linguas_indigenas_da_extincao/22904/