Cenário em 250 anos mostra colapso após mudanças de hábitos
Populações habitam a região amazônica há milhares de anos, mas o avanço de elementos da vida moderna está pondo em risco a sustentabilidade desses povos e do ecossistema onde vivem. Essa é a conclusão de um estudo elaborado pela equipe do biólogo português José Fragoso, da Universidade Stanford, nos EUA. Durante três anos e meio, os pesquisadores coletaram dados de campo em três tribos para avaliar o impacto de quatro das principais influências externas no interior de reservas indígenas. Por modelo computacional, eles construíram cenários por um período de 250 anos, no qual três dessas influências tiveram efeitos significativos na população, cobertura florestal e biodiversidade locais — uma delas provocou até o colapso do sistema.
Os cientistas avaliaram a oferta de serviços avançados de saúde, a substituição de tabus e crenças religiosas tradicionais, a degradação das áreas no entorno das reservas e a introdução de fontes externas de alimentos. O estudo foi feito com base em dados coletados nos grupos indígenas Macuxis, Uapixanas e Uaiuais, que somam cerca de dez mil pessoas em reservas na fronteira entre o Brasil e a Guiana. Das variáveis analisadas, apenas os tratamentos médicos não provocaram danos.
— Os resultados do modelo mostram que apenas não invadir áreas indígenas não é suficiente — diz Fragoso. — O que acontece no entorno das reservas tem grande impacto no interior.
SISTEMA EM COLAPSO
O pior problema seria a introdução de fontes externas de alimentos. Nos modelos computacionais, esse elemento provocou um rápido aumento da população, com pressão sobre a biodiversidade e cobertura florestal. Em certo ponto, o sistema entrou em colapso, com a região não sendo mais capaz de suportar o peso populacional. A mudança na dieta também gerou problemas de saúde antes inexistentes.
— Os povos podem ficar dependentes da comida industrializada, o que provoca doenças — diz o pesquisador sobre a previsão. — Ou a população aumenta tanto que os recursos naturais se tornam insuficientes.
De acordo com o diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Fundação Nacional do Índio (Funai), Artur Nobre Mendes, tribos brasileiras já sofrem com o contato com alimentos externos. A imagem romântica do índio forte e saudável está sendo substituída por obesidade e doenças relacionadas, como diabetes e hipertensão. O “Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas”, elaborado pela Fundação Nacional de Saúde em 2010, já apontava que 22,4% das índias das regiões Sul e Sudeste sofriam com obesidade.
Estudo mais recente, elaborado por pesquisadores da USP e Unifesp entre índios Xavantes, no Mato Grosso, revelou obesidade em metade da população e índice de prevalência de diabetes de 28,2% entre a população adulta — quatro vezes maior que a média no país. Segundo Mendes, esses males são, em parte, “efeitos colaterais” de políticas assistenciais, como o Bolsa Família.
— A gente vê com muita preocupação o consumo de produtos industrializados, que estão provocando obesidade e doenças relacionadas em terras indígenas — conta o diretor da Funai. — Existem pesquisas que associam esse problema à extensão de programas de assistência social, como Bolsa Família e aposentadoria rural, que são positivos, mas têm efeitos colaterais. Com o dinheiro, eles estão mudando os hábitos alimentares, inserindo muitos carboidratos e produtos açucarados.
A substituição de crenças religiosas também é uma ameaça aos povos indígenas, afirma o pesquisador de Stanford. Nos modelos, a inserção de símbolos e novos valores provocou a redução das espécies animais e da cobertura vegetal.
Paulo Junqueira, do Instituto Socioambiental, relata que o processo de evangelização está afetando a vida de um dos povos do Parque Indígena do Xingu. Metade dos cerca de 1.500 Kawaiwetes já se converteram, provocando alterações profundas nos hábitos culturais. A vestimenta mudou, festas e rituais são proibidos, assim como o casamento com duas mulheres.
— No começo, a evangelização gerou conflitos, mas agora eles perceberam que não adianta brigar — diz Junqueira.
Segundo Mendes, a Funai observa com preocupação a atuação de missionários em territórios indígenas, mas não há muito o que se fazer a respeito.
— Essa questão é bastante delicada porque envolve a liberdade de culto — observa Mendes. — Não podemos proibir a atuação dos religiosos, a não ser que eles estejam interferindo na liberdade de culto dos índios, com flagrante desrespeito às crenças tradicionais.
Os modelos de Stanford ainda indicam consequências negativas do desmatamento no entorno dos territórios indígenas, seja pela urbanização ou pelo avanço do agronegócio, levando à queda no número de animais, extinção de espécies e redução da cobertura vegetal provocada pelo empobrecimento do solo.
Por: Sérgio Matsuura
Fonte: O Globo
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