Líder da ocupação da sede da Coordenação Regional Vale do Javari da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Atalaia do Norte, no Amazonas, o indígena Marcelo Marke Turu Matís, de 30 anos, concedeu uma entrevista exclusiva à reportagem da Amazônia Real sobre o protesto que vai completar 1 mês, na próxima sexta-feira, 19 de fevereiro, e que já é considerado a maior mobilização contra a atual política indigenista para as etnias isoladas e de recente contato na Amazônia.
A Funai não teve sucesso nas negociações com o Matís até o momento. Segundo Marke Matís, como é conhecido no movimento indígena, na segunda-feira (15) o presidente da fundação João Pedro Gonçalves ligou para os manifestantes e anunciou sua ida a Atalaia do Norte no dia 2 de março, próximo. Marke diz que o presidente quer negociar o fim do protesto pacificamente, mas exige a desocupação da sede. As lideranças irão avaliar a proposta até o dia 21 de fevereiro. “O João Pedro prometeu exonerar o Bruno”, diz.
Marke Matís afirma que as lideranças Matís, Marubo, Mayuruna e Kanamari reivindicam a exoneração imediata do coordenador Bruno Pereira porque ele não soube intermediar o conflito da etnia com os isolados Korubo do rio Coari. Bruno é subordinado ao chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatos (CGIIRC) da Funai, em Brasília, Carlos Travassos. “Bruno sempre gritou com os indígenas. Desrespeitou os velhos. O povo Matís não aceita isso”, afirma.
No foco da tensão estão as mortes de dois Matís e de ao menos oito Korubo. Para Marke Matís, os Korubo do rio Coari seriam os responsáveis pelas mortes de duas lideranças Matís, seus tios Damë e Ivã Xukurutá, em 5 de dezembro de 2014. O que estaria por trás do ataque, segundo o jovem líder, é uma disputa por mulheres entre os próprios Korubo, um deles conhecido como grupo da Maiá, contatado em 1996, mas que hoje está em permanente contato com servidores da Funai. Maiá é a principal liderança feminina do grupo Korubo contatado.
“O pessoal da Frente de Proteção da Funai começou a pedir para o Korubo da Maiá trabalhar. Começaram a fazer farinha. A Funai vendeu a farinha e deu o dinheiro para os Korubo. Aí os Korubo juntaram dinheiro e compraram um motor peque-peque 5.5. Matís disse para Funai: ‘não ensina os Korubo a ganhar dinheiro. Não ensina os Korubo a ter motor’”.
Marke Matís afirma que o grupo da Maiá não tem mulher para todos os homens. “Foi por isso que eles [o grupo da Maiá] começaram a buscar mulher onde tiver com os outros parentes Korubo. Esse grupo da Maiá foi na aldeia do Korubo, no rio Coari, e atacou os isolados. Os Korubo do Coari começaram a se espalhar próximos das aldeias dos Matís, a Todowak, que fica também no rio Coari, onde moravam os meus tios”, disse.
Para a Funai, no foco do conflito está uma disputa territorial entre os Matís e Korubo. Marke Matís nega e afirma que desde 2010 as lideranças pedem duas bases de monitoramento das aldeias para evitar novos conflitos, mas a Funai diz que não tem recursos. “O Carlos Travassos não conhece nosso território tradicional. Ninguém briga por terra. Nós somos todos do Vale do Javari, nosso território é grande. Isso [guerra por terra] é uma invenção, eu fico muito triste com esse negócio. Esse grupo da Maiá não tinha mulher. Foi por isso que eles começaram a buscar mulher onde tiver com os outros parentes [Korubo]”.
A Terra Indígena Vale do Javari tem mais de 8,4 milhões de hectares onde vivem 4,5 mil índios de contato permanente, entre eles os Matís, Marubo, Mayuruna e Kanamary, e dois grupos de recente contato, os Korubo, além de 16 grupos isolados, sem contato com a sociedade nacional não indígena. Leia a entrevista especial.
Amazônia Real – Por que os Matís expulsaram o coordenador regional do Vale do Javari, Bruno Pereira, da sede da Funai e pediram a exoneração dele? Qual é a insatisfação com o trabalho do servidor, que está no cargo há cinco anos?
Marcelo Marke Turu Matís – O Bruno não respeitou o povo Matís. Ele mesmo começou com esse negócio de que os Matís estavam invadindo o acampamento dos Korubo. Isso não é verdade. Essa é a nossa revolta. Nós estamos pedindo há muito tempo para a Funai fazer um posto de vigilância da nossa terra porque os Korubo continuam chegando próximo da gente.
Amazônia Real – O que foi que o Bruno Pereira fez?
Marke Matis – O Bruno sempre gritou com os indígenas. Desrespeitou os velhos. Ele dizia que ia mandar a gente calar a boca na aldeia. O povo Matís não aceita isso. Depois das mortes do Damë e Ivã, Bruno vem falando da gente, diz que não vai respeitar mais o povo Matís. Ele quer mandar na gente. Então, por isso aí, o Bruno dividiu os Matís dos Korubo. Ela fala da gente para os outros. Agora a gente sabe quem é essa pessoa. Por isso temos raiva desse cara aí.
Amazônia Real – Caso a Funai não exonere o Bruno Pereira, o que os Matís vão fazer?
Marke Matís – Nós vamos mexer até com a presidente Dilma [Rousseff]. A gente vai fazer uma denúncia internacional. O Carlos Travassos fica dizendo que somos manipulados. O que não é verdade. Nossa mobilização é legítima. Não é da cabeça de ninguém. Se os guerreiros estão ocupando a sede da Funai é uma decisão que veio da aldeia. A Funai não cumpre as coisas que promete. Como eu sou mais entendido, estudei, o Bruno nunca me chamou para discutir, ele manda recado.
Amazônia Real – A Funai diz que a revolta das lideranças aconteceu depois que o coordenador Bruno Pereira prometeu chamar a Polícia Federal para prender os Matís que fizeram o revide, em 2014. Foi isso mesmo?
Marke Matís – O que o Bruno fez a última vez, o que aconteceu quando os Matís invadiram o acampamento da Funai, aí o Bruno disse que ia chamar a Polícia Federal e o Exército. Os Matís estavam preparados. Os Matís não queriam chegar lá [no acampamento]. Colocarmos um cabo no rio para ele encostar [o barco]. Essa briga [Bruno e Matís] é de guerra. Nem sabíamos que o Bruno queria levar a Polícia Federal para denunciar a gente. A culpa é da Funai, por isso a gente não quer o Bruno. Se o Bruno continuar trabalhando no Javari, ou em outra região, o Bruno vai se f…. Ele é servidor da Funai, ele pode ir para outra região, mas aqui mesmo a gente não quer. Nós povo Matís fomos contatados pela Funai em 1976. Os funcionários Pedro Coelho, Samuel Cruz e Wellington Figueiredo contataram os Matís. Isso faz 40 anos. No contato com Funai, morreram muitos Matís. Nunca teve uma investigação.
Amazônia Real – Os Matís têm um nome para substituir o Bruno Pereira?
Marke Matís – Nós povo Matís, a gente sabe que é muito difícil acreditar no branco. Nós estamos unidos para colocar um indígena mesmo. Se ele fizer uma coisa errada, a gente tira ele. A gente quer um indígena do Vale do Javari. Tem o Darcy Marubo, tem o Manoel Chorimpa Marubo. Nós vamos fazer uma consulta nas comunidades. De nome Matís temos o meu irmão Beaux Matís, que está estudando administração em Goiânia (GO). A gente só vai sair [da sede ocupada] quando o coordenador Bruno for exonerado. Se o Bruno voltar para a coordenação, os Matís nem voltam para aldeia. Eles vão ficar no meio da viagem. Os Matís voltam e entram na Funai de novo..
Amazônia Real – A Funai reconhece a existência de um conflito interétnico entre os Korubo e Matís por disputa política e territorial entre os dois povos. E os Matís reconhecem?
Marke Matís – A história que a gente conhece, que os velhos que estão aí nem existiam, os outros velhos é que contavam, é que os Korubo faziam um ritual contra os Matís. Os pajés Matís descobriram e ficaram com raiva. Os Korubo não tinham flechas. O Matís é que têm. Naquele tempo não tinha a demarcação. Muitos caçadores mataram Matís. Mataram mais de 180 pessoas. Depois daí os Matís não tinham mulher. Aí os Matís fizeram guerra com os Korubo por causa de mulher. Mas isso foi há muito tempo, isso é a história. Os Korubo viviam bem perto de nós.
Amazônia Real – Uma base de monitoramento da Funai vai resolver os ataques do Korubo?
Marke Matís – A gente quer a troca do coordenador [Bruno Pereira]. Depois que o novo coordenador assumir, nós vamos conversar com ele. A gente quer o monitoramento, mas não é só para os Matís, mas para outros parentes. Está aparecendo índios isolados em toda região do Vale do Javari. A Funai também não pode ficar dizendo que os Matís mataram os Korubo. Isso a gente não quer. Os Matís sempre foram usados pela Funai. Os Matís é que faziam roça para os Korubo. Os Matís que faziam o diálogo com os Korubo. A gente que preparava tudo, sempre ajudamos a Funai no contato. Aquilo que aconteceu com o meu tio [Damë, morreu em 5 de dezembro de 2014], a gente já tinha pedido para fazer o contato com os Korubo. Eles estavam muito próximos da aldeia. A gente sabe que tem a malária, e a gente pediu a Funai para fazer o contato com os isolados. A Funai fez o contato, mas a gente sempre falava que ia acontecer alguma coisa. A Funai dizia: “não, deixa eles ficarem lá”. Então por que a Funai não faz o monitoramento? E pode acontecer o pior. Isso que a gente não quer. A gente quer trabalhar junto. A Funai não quer. O que eu quero dizer para o presidente da Funai [João Pedro Gonçalves], é que se ele não tirar o Bruno, pode acontecer problema.
Amazônia Real – Como são as bases da Funai da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari?
Marke Matís – Está tudo destruído. Os funcionários ficam acampados. A nota que os servidores da Funai soltaram, dizendo que as bases estão boas, isso aí é tudo mentira. Não gostei. Nós é que seguramos a CR aqui, quem brigou para manter no Vale do Javari fomos nós. Esse grupinho é que está fazendo essa confusão. Eles queriam levar para o Acre. Ficam publicando mentira.
Amazônia Real – Por que os Korubo atacaram Damë e Ivã Xukurutá, em 2014?
Marke Matís – Isso aí é porque tem o grupo da Maiá (nome da mulher que lidera o grupo contatado em 1996), esse é o culpado. Esse grupo sempre briga por mulher com outros Korubo. O Matís foi que ajudou a falar a língua dos Korubo com o Sydney Possuelo. Os Matís ajudaram a fazer a roça dos Korubo. Os Matís são intérpretes. Depois daí a Funai inventou de dizer que os Matís estavam se envolvendo com as mulheres dos Korubo. Esse negócio de mulheres, isso é mentira. Os Korubo é que brigam com Korubo por mulheres. Esse grupo da Maiá foi na aldeia do Korubo, no rio Coari, e atacou os isolados. Daí os Korubo do Coari começaram a se espalhar próximos das aldeias dos Matís, a Todowak, que fica também no rio Coari. Uma criança Korubo do Coari morreu. E quando morre um, eles têm que matar outro. Os Korubo chegaram na aldeia Todowak, dos Matís. O meu tio Damë estava na roça. Ivã, que é também meu tio, estava na roça também.
Amazônia Real – A Funai diz que realizou, em 2015, reuniões com os Matís (aldeias Bukuwak) e os grupo Korubo contatados com o objetivo de pacificar a atual relação de disputa política e territorial entre os dois povos indígenas. O que aconteceu?
Marke Matís – Esses indigenistas que estão aí, são da Funai, eles não sabem de nada. É por isso que nós vamos detonar a Funai todinha. Esses grupos do Bruno, da Danielle [Danielle Moreira Brasileiro, servidora e casada com o funcionário Jorge Wster Pereira], do Carlos Travassos. Esse grupo está trabalhando com um filho de madeireiro. Esses caras aí. Tem um rapaz chamado Diego [Diego Graça Sandouval], esse é filho do madeireiro. Ele é da família que mataram os índios no Javari. É esse Diego é do lado do Bruno.
Amazônia Real – A funcionária Danielle Moreira Brasileiro encabeçou uma lista de uma carta de funcionários, muitos contratados, apoiando a permanência do coordenador Bruno Pereira. A carta foi postada em sites da internet. O coordenador da CGIIRC, Carlos Travassos repercutiu em sua página do Facebook dizendo: “Queria aqui parabenizar a todos os servidores que escreveram essa carta, que emociona pela paixão que possuem pelo trabalho, que nos honram pela firmeza com que defendem o que é justo, e pela lucidez com apresentam os fatos verdadeiros aos cegos, aos loucos e aos ignorantes. Aos cretinos e desonestos, nem citarei, por que para eles só o destino desgraçado os espera”. O que o senhor tem a dizer sobre as declarações do coordenador Carlos Travassos?
Marke Matís – O Carlos Travassos (Coordenador do CGIIRC) é um mentiroso, ele quer mandar no povo Matís. Ele falou bem assim na minha aldeia: “o povo Matís estava invadindo o território dos índios Korubo”. Os Matís velhos responderam: “você, Carlos, não sabe de nada. Você é um moleque, você não conhece a nossa região, nosso território tradicional. Nunca teve briga por terra”. Foi assim que nós respondemos a ele. Ele queria expulsar os velhos. Na verdade, o Carlos, o Bruno e a Danielle fazem parte de um grupo que fica intrigando com o nosso povo. Eles deviam respeitar nossos princípios de luta, nossa organização. Mas ficam dizendo que nossa mobilização é manipulada, que só tem Matís, não tem Marubo, não tem Mayoruna, não tem Kanamary. Eles têm que nos respeitar, quem nos abandonou foi a Funai.
Amazônia Real – A Univaja declarou que houve a uma vingança. Os Matís negaram. Em 27 de novembro, a Funai disse em nota pública que os Korubo relataram ao menos oito mortes, depois do ataque a Damë e Ivä. Houve o revide?
Marke Matís – Isso é mentira. Nós falamos com os velhos a nossa história. Os antropólogos, os indigenistas da Funai não conhecem a nossa vida. Não é verdade que brigamos por território. Segundo os velhos, o povo Xëabo, que a gente chama Korubo também, fazia feitiçaria para a gente, quando éramos vizinhos nas cabeceiras dos rios Coari e Rio Branco. Depois daí os Matís pensaram né: eles (os Xëabo) estão fazendo mal para gente. Esse conflito foi no passado. Nós nunca fizemos vingança. É isso que os velhos falam. Onde que começou a briga? Vou falar a verdade: o primeiro grupo de Korubo foi contatado em 1996, pelo Sydney Possuelo. Ele chamou Matís e Marubo para serem intérpretes. Esse grupo contatado passou a ser chamado de “grupo da Maiá”. A Funai levou esse grupo para uma aldeia próxima de sua base da Frente de Proteção. Entre 2007 e 2010, esse “grupo da Maiá” começou a brigar por mulher. Esse grupinho foi no rio Coari atrás das mulheres dos Korubo isolados. Isso é culpa da Funai. De 2007 a 2011, os Matís terminaram a reocupação do nosso território tradicional. Mudamos a aldeia Todowak das margens o rio Ituí para o rio Coari. As aldeias Tawaya e Bukuak do rio Ituí para as margens do rio Branco. Nós mudamos e pedimos a Funai o monitoramento das nossas aldeias.
Amazônia Real – A mudança dessa aldeia Todowak, do rio Ituí para o rio Coari, motivou o conflito?
Marke Matís – Não. Nós mudamos por briga nossa interna dos Matís. Muitos parentes discutiam por causa de pesca de tracajá. E a aí a gente também perdeu muitos parentes por doenças, como malária e várias outras doenças. Por isso mudamos para o rio Branco, em 2010. Aí fomos para lá, mas a Funai nunca atendeu nós com o monitoramento alegando falta de recursos financeiros para fazer um polo base.
Amazônia Real – A Funai disse em nota enviada à nossa reportagem em 2014, que dentro do processo de mudança da aldeia Todowak, discutiu a proximidade com os isolados Korubo, mas respeitou a decisão dos Matís em retornar ao seu território tradicional. Essa mudança de aldeia não seria o motivo do conflito?
Marke Matís – Esse conflito com os Korubo começou assim: esse grupo Maiá começou com 18 pessoas. Eles foram contatados pelo Sydney Possuelo porque o branco estava matando os isolados. Quem estava interpretando os diálogos do grupo Korubo da Maiá era o povo Matís. A Funai pensou assim: “os Matís estão se relacionando com os Korubo da Maiá”. A Funai isolou o Matís para não acompanhar os Korubo da Maiá. Matís deixou de interpretar. A Funai passou a usar só os Marubo como intérpretes. Aí foi que a Funai, o pessoal da Frente de Proteção, começaram a pedir para os Korubo da Maiá trabalhar. Aí Korubo começou a fazer farinha. Eles começaram a fazer flechas. Começaram a plantar banana. A Funai vendeu a farinha e deu o dinheiro para os Korubo. Aí os Korubo juntaram dinheiro e compraram um moto peque-peque 5.5. Não sei quanto foi o total de dinheiro eles ganharam. Matís disse para Funai: “não ensina os Korubo a ganhar dinheiro. Não ensina os Korubo a ter motor”. A Funai é culpada.
Amazônia Real – O grupo da Maiá está sem mulher?
Marke Matís – O grupo da Maiá está em cima da base da Funai. Onde é que o pessoal da Funai trabalha. Desse local para a aldeia Todowak, dos Matís, são duas horas de viagem de rio no motor ponto 60 [mais veloz]. Os servidores da Funai ficam dizendo que a briga dos Korubo e Matís é por terra. Não é. A Funai quer investigar quem está certo, e quem está errado. Conversando com os velhos Matís para saber aonde somos assassinos, como a Funai quer dizer. Os velhos dizem: “nós não somos assassinos”. A Funai está dizendo que os Matís estão brigando para pegar mulher dos Korubo, depois diz que é por terra. Ninguém briga por terra. Nós somos todos do Vale do Javari, nosso território é grande. Os mais velhos dizem: “o povo Matís nunca fez guerra com os Korubo”. Isso [guerra]é uma invenção, eu fico muito triste com esse negócio.
Amazônia Real – E por que os Korubo atacaram Damë e Ivã Xukurutá?
Marke Matís – Isso eu não sei. Depois [das mortes], os parentes isolados chegaram mais próximo da aldeia Todowak, onde atacou meu tio. Sempre que o meu tio (Damë) descia para a cidade, ele sempre encontrava os Korubo na beira do rio.
Amazônia Real – E os servidores da Coordenação e a Frente sabiam dessa situação da falta de mulheres dos Korubo? O que eles fizeram para proteger os Matís?
Marke Matís – O Bruno sabia disso tudo, ele estava aqui o tempo todo. Nós povo Matís não sabemos o que causou o ataque dos Korubo contra os Matís. A gente sabe que quem é o culpado é a Funai. A Funai ensinou os Korubo a usar o motor peque-peque. A Funai ensinou os Korubo a vender farinha. A Funai ensinou os Korubo o que é o dinheiro.
O pai da Maiá ficou doente e foi para Manaus. Eu participei da viagem como intérprete. A Funai não conta a verdade, que os parentes estão nessa situação, com falta de mulher e doença.
Amazônia Real – Quantos Matís trabalhavam como intérpretes pela Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari?
Marke Matís – Primeiro foi oito, depois foi quatro. Em 2014 tinha cinco. Hoje não tem. Matís não quer trabalhar enquanto não trocar o coordenador. Só quando mudar o chefe é que vamos voltar a proteger nossa área de novo.
Amazônia Real – Os Matís querem continuar trabalhando como intérpretes dos Korubo?
Marke Matís – Sim, trabalhamos. Todos os colaboradores indígenas trabalham com os Korubo. Somos tipo serviços prestados da Funai.
Amazônia Real – A Univaja declarou que um grupo de 30 guerreiros Matís foi vingar as mortes de Damë e Ivã. A Univaja confirmou que houve a vingança. Tenho que perguntar novamente, houve o chamado revide?
Marke Matís – Sim. O que eu entendi é que eles falaram que teve vingança sim. Isso é porque ninguém vai sentir uma perda na família, com aquela que aconteceu com Damë, não foi matou e jogou. Eles [os Korubo] fizeram uma coisa feia. Eles esbagaçaram feio. Isso ninguém faz. Foi por isso que os Matís foram [mortos]. Os Korubo furaram os Matís. Depois eles esbagaçaram assim, cortaram bem. Foi isso que eles fizeram. Isso foi muito forte.
Amazônia Real – Os Korubo atacam os parentes sempre assim?
Marke Matís – Korubo não faz isso não. Acho que por aí, ninguém sabe. Eu penso e os próprios Matís estão com dúvida do que foi o motivo [das mortes de Damë e Ivã]. Mas eu, que sou mais entendido [estudou], a gente sabe que o culpado foi da Funai. A Funai que ensinou os Korubo a fazer farinha, a vender artesanato, a juntar dinheiro. A Funai deu 20 litros de gasolina para eles subiram o rio Coari.
Amazônia Real – Segundo a Funai, os Korubo relataram que aconteceu o revide, tendo morrido aos menos oito índios isolados em ataque dos Matís. Outras três pessoas sobreviveram. Qual é a verdade?
Marke Matís – Acho que esse aí pode ser certeza, pode ser verdade. Mas, o que a gente não está gostando é dizer que estamos em disputa de terra. Nós povo indígena tem território no Vale do Javari, que é muito grande. Ninguém está brigando por terra aqui. Nem estamos brigando por mulher. Não estamos disputando território. Nós queremos o monitoramento, não queremos vingança. Foi por isso que ocupamos a Funai. Os Korubo são muito difíceis. Eles vão brigar de novo, vão matar a própria Funai. Pode ter certeza, eles são difíceis. Amanhã eles ficam com raiva, os Korubo são assim.
Amazônia Real – Os Matís podem viver pacificamente ao lado dos Korubo?
Marke Matís – O que a gente quer povo Matís é ser monitorado pela Frente de Proteção nas aldeias. Queremos que eles fiquem nas aldeias. A Funai não fala que está monitorando os isolados? Por que não fica com os Matís? Depois que acontecer um problema, a Funai vai lá se meter querendo resolver. Isso é errado. A Funai tem que monitorar. Mas diz que não tem recursos. Onde está o dinheiro do Fundo Amazônia? Não tem só os índios Matís, tem várias etnias. Nós temos três aldeias: Bukuak Paraiso, Tawaya, no rio Branco, e Todowak, no rio Coari. São mais de 500 Matís. Eu falo cinco línguas: Matís, Korubo, Kanamari, Marubo, Português. Eu aprendi muito com os meus parentes quando eu era intérprete dos índios na Casa do Índio (Casai). Não participei de contato, mas o meu tio Ivã Rapa Matís participou do contato de 1996 com o grupo Maya.
Amazônia Real – Pela convivência que você teve com os Korubo, o que eles pensam da sociedade nacional não indígena? O que eles pensam da Funai?
Marke Matís – Eles não entendem (risos). Nós é que falamos para eles. A Funai que fica inventando.
Amazônia Real – A Funai ameaçou investigar os Matís pelas mortes do oito Korubos?
Marke Matís – Mas eles não falam isso? O Ministério Público Federal de Tabatinga, o dr. Ramon (procurador da República, Ramon Amaral), falou com a gente aqui na Câmara (de Atalaia do Norte) sobre essa investigação. O que eu quero dizer para a Funai é que muitos Matís foram mortos durante o contato, em 1976. Servidores da Funai usaram as mulheres Matís. Estupraram as mulheres Matís. Nunca esquecemos disso. E a Funai nunca fez nada, nunca investigou.
Amazônia Real – A Funai nega que continua acontecendo conflito entre Korubo e Matís. Qual é a situação atual?
Marke Matís – Nós solicitamos suas bases de monitoramento territorial da Funai, mas nunca fomos atendidos, para evitar situações como essa que vou contar da aldeia Bukuwak Paraíso, no rio Branco. No dia 30 de janeiro deste ano (2016), uma menina de 22 anos, o dele é um guerreiro Matís que está na ocupação. Ela foi com um dos filhos para roça, estavam sozinhos. Ela que foi a culpada mesmo. Ela foi para roça 8h30 da manhã. Os Korubo tentaram levar ela, não conseguiram. O Matís é muito forte. Dois homens Matís foram procurar ela e a criança. Encontraram ela às 16 horas. A menina estava sem roupa. Na aldeia Bukuwak Paraíso moram 180 pessoas. Outra aldeia próxima é a Tawaya. Mais três horas de barco fica a aldeia Todowak, onde morreram Damë e Ivã. Da Terra Indígena para a cidade de Atalaia do Norte são de quatro a cindo dias de viagem de barco. É por isso que precisamos de monitoramento, vigilância, mas a Funai não aceita, o Bruno não aceita. Não vamos desistir desse protesto, vamos ficar até o Bruno sair.
Amazônia Real – Os Matís foram contatados há 40 anos. O que o senhor pensa desse contato com a Funai?
Marke Matís – O que os velhos Matís falam é porque a Funai fez contato com nós, e depois abandonou. Isso é a nossa revolta. Os velhos falam: “agradecemos tudo que conquistamos. Mas nós sofremos muito”.
Os Matís foram contatados nos anos 1976. Eu nasci em 1986, na aldeia Porto Velho, no Vale do Javari. Não existe mais essa aldeia. Tinha índios isolados próximos e mudamos para aldeia Aurélio. Por causa da mesma situação com os índios isolados, mudamos de novo. Da aldeia Aurélio é que mudamos para Rio Branco, onde tinha outra aldeia, Beija-Flor, que também apareceu índios isolados. Tiveram que mudar também. Na época, quando eu tinha nove anos, foi mandada pela Funai a professora Nara. Ela me incentivou a estudar. Eu me criei só com o meu avô, nem com minha mãe, e nem como o meu pai. Para estudar, eu tive que vir para Atalaia do Norte, onde eu moro hoje. Mas foi muito difícil. Não tinha lugar para eu morar, não tinha lápis e nem caderno. Não tinha uma pessoa para me ajudar, não tinha onde eu comer. Eu sofri muito. Sofri muita discriminação.
Amazônia Real – Como o senhor entrou no movimento indígena do Vale do Javari?
Marke Matís – Quando eu tinha 12 anos conheci o Clóvis Marubo. Ele estava na assembleia do movimento indígena do Conselho Indígena do Vale do Javari (Civaja). Quando eu conheci o Clóvis, eu pensei em me envolver no movimento indígena. Com 17 anos entrei no quartel [pelo alistamento miliar] do Exército. Fiquei dois anos. Foi quando eu consegui juntar dinheiro para terminar meus estudos. Em 2008 fundamos a Associação Indígena Matís (AIMA). Nós fazemos projetos de saúde e educação. Ajudamos os mais velhos na saúde. Trabalhei como presidente da associação de 2012 a 2014. Hoje sou assessor.
Amazônia Real – O senhor usa muito as redes sociais e o aplicativo Whatsapp para divulgar o movimento indígena? Como o senhor usa a internet no movimento indígena em uma região tão isolada?
Marke Matís – Conheci a internet na escola, fazendo curso de informática. Tenho uma página no Facebook, a associação também tem uma. Uso o celular para acessar a internet apenas em Atalaia do Norte. No Vale do Javari não tem internet, a comunicação é via rádio. Uso o Facebook para divulgar o nosso movimento. Falo com muitas lideranças, muitos parentes do Amazonas e de outros estados. Trabalho também como servidor do município de Atalaia do Norte. Eu comecei trabalhando na saúde indígena. Hoje eu me afastei por causa dessa mobilização do meu povo. Meu salário vem da prefeitura. Estou me preparando para fazer uma faculdade, mas ao mesmo tempo o povo Matís quer que eu entre na política. Eu tenho quatro filhos, um de 9 anos, 2 anos, 4 anos e 3 anos. Por causa deles eu preciso pensar bem no meu futuro e como defender o meu povo.
A agência Amazônia Real solicitou uma entrevista com o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves. A assessoria de imprensa do órgão disse que o Coordenador da CGIIRC da Funai, Carlos Travassos, iria atender a reportagem. No dia 4 de fevereiro a agência enviou 15 perguntas para ele responder sobre questões levantadas na entrevista acima e durante todo o movimento de ocupação em Atalaia do Norte, mas ele não respondeu até o momento. Procurado para se manifestar, o coordenador da CR Vale Javari, Bruno Pereira, disse que prefere não comentar as declarações de Marke Matís. A servidora Danielle Brasileiro não foi localizada para comentar as críticas da liderança Matís, assim como o funcionário Diego Graça Soundoval, também citado na entrevista com o líder Matis.
O Ministério Público Federal de Tabatinga (AM) informou que as reclamações dos índios Matís, como suposto desvio de recursos do Fundo Amazônia, serão apuradas e os documentos entregues pelos indígenas serão analisados por meio de um inquérito civil que será instaurado.
Em um vídeo produzido pela produtora Noctua em parceria com a Ong IWGIA da Dinamarca, o coordenador Carlos Travassos aparece falando sobre a situação dos índios Korubo do grupo da Maiá. Por sua vez, os Korubo relatam a situação de falta de mulheres para os homens, como diz Marke Matís. Veja o vídeo aqui.
POR: – Agência Anazônia Real
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