Um violento descumprimento da lei ameaça os esforços nacionais para acabar com o desmatamento ilegal.   


O corpo de um segurança permanece estendido em uma ponte no meio da Amazônia enquanto o seu pai tenta conter as lágrimas.  Passaram-se cinco horas desde que Wislen Gonçalves Barbosa, 23 anos, foi emboscado por um atirador não identificado em Anapu, no Pará. Uma bala está alojada em seu capacete, que rolou para o lado. Mas a polícia ainda não chegou e muito menos começou a busca pelos assassinos.

É mais um sinal da ausência de lei e da violência que afligem grande parte da Amazônia brasileira – problemas que têm um peso direto nas discussões globais sobre mudanças climáticas que estão perto do desfecho em Paris nesta semana.

Como parte das negociações, o Brasil prometeu acabar com o desmatamento ilegal – principal fonte de emissões – até 2030. Mas, em Anapu, as limitações do país em cumprir suas promessas estão bem claras: briga pela posse da terra, um Estado de Direito algumas vezes incerto e um grande apetite por terras.

“Conseguimos diminuir significativamente o desmatamento causado por grandes produtores agropecuários”

“Conseguimos diminuir significativamente o desmatamento causado por grandes produtores agropecuários, mas ainda temos áreas pequenas sendo devastadas por pequenos e médios produtores e por grupos criminosos”, disse Daniel Azeredo, promotor público de Belém, capital do Pará. “Agora o desafio é impedir essas pessoas”.

Gonçalves Barbosa trabalhava no PDS Esperança, uma reserva criada para promover agricultura sustentável para pequenos produtores. Foi aqui que dez anos atrás pecuaristas criminosos ordenaram o que se tornou um dos assassinatos mais notórios da Amazônia – a morte de Dorothy Stang, freira e ambientalista americana.

Desde então, o desmatamento diminuiu para cerca de um quinto em relação ao pico de 2004. Agora a média é de 5.545 quilômetros quadrados por ano, na esteira de uma ofensiva sobre grandes pecuaristas, produtores de soja e seus consumidores, como grandes frigoríficos.

Mas grande parte dessa diminuição ocorreu há algum tempo: a taxa de desmatamento manteve-se praticamente constante durante esta década. Devido ao seu tamanho, o Brasil destrói mais florestas por ano do que quase qualquer outro país do mundo. Apenas a Indonésia causa um dano comparável.

O problema, de acordo com promotores e pesquisadores, está na natureza do crime: tipicamente, as árvores da Amazônia são derrubadas por criminosos e pequenos fazendeiros que praticam uma agricultura de corte e queima. Madeireiras ilegais e pecuaristas invadem terras do governo, desmatam e tomam posse, aproveitando-se da fraqueza e da ausência do Estado nas fronteiras amazônicas.

No Pará, um estado do tamanho da França, Espanha e Portugal juntos, o desmatamento é bastante comum em áreas onde a posse da terra é contestada. A disputa costuma resultar em violência, conforme pecuaristas e sem-terras fazem suas reivindicações.

Tomar partido dos sem-terras foi parte do trabalho de Stang, cuja memória é homenageada em Anapu por uma procissão anual comemorativa através da cidade empoeirada, junto com o Fusca branco dela, muito bem cuidado.

Stang defendeu dois grandes “projetos de desenvolvimento sustentável” em terras governamentais que os pecuaristas ocuparam: Esperança, onde Gonçalves Barbosa foi assassinado, e Virola-Jatobá.

A ideia de Stang era permitir que os sem-terras fossem assentados em troca da preservação de grande parte da floresta. Um grupo de fazendeiros comandado por Reginaldo Pereira Galvão, conhecido como “Taradão”, encomendou seu assassinato para barrar a execução dos projetos. Galvão foi condenado pelo crime a 30 anos de prisão, mas continua solto após apresentar recurso e aguarda o resultado.

“Ela deu a vida pelos projetos sustentáveis”

“Ela deu a vida pelos projetos sustentáveis”, afirmou o padre José Amaro Lopes da Silva, da Comissão Pastoral da Terra, um grupo católico de direitos humanos, no quintal de sua casa.

Ele alega que o mesmo “grupo” de fazendeiros que matou Stang continua operando na região e tem uma lista com 30 pessoas marcadas para morrer, inclusive ele. E acrescenta que os fazendeiros assassinaram oito pessoas recentemente: chegando às casas remotas das vítimas em um comboio de picapes, colocando fogo em suas cabanas e depois atirando neles ao chegarem à cidade.

Um dos parentes das vítimas lembra que: “Quando dissemos que estávamos esperando uma decisão da corte [sobre uma disputa de terra], um deles abriu a porta da picape e mostrou uma coleção de armas”. O parente também lembra o que o fazendeiro disse a seguir: “Essa é a nossa justiça”.

Uma pequena agricultora local, Francisca Santos de Souza, disse que seu filho de 17 anos foi morto “como um cachorro” – levou um tiro quando estava saindo de uma festa.

Padre Amaro vê a série de assassinatos, incluindo o de Gonçalves Barbosa, como parte de uma campanha dos fazendeiros para intimidar os pequenos produtores, tomar a terra e limpá-la para criar gado e cultivar soja.

Mas a polícia nega que os assassinatos tenham ligação com as disputas por terra. “Tudo mentira”, disse o escrivão do posto policial de Anapu, que mostrou uma queixa de um fazendeiro contra Padre Amaro, acusando o padre de incitar os pobres a invadirem as fazendas da região.

Muitos fazendeiros mostram-se como vítimas de gangues criminosas que invadem suas terras. “A propriedade é nossa – nós compramos”, disse Silvério Albano Fernandes, do Sindicato dos Produtores Rurais de Anapu, que ressaltou a vontade dos fazendeiros de acabar com a confusão sobre títulos de terras.

O governo está trabalhando no problema de disputas territoriais, porém, de acordo com um estudo do Imazon, uma organização focada na Amazônia, levará 56 anos para solucionar o problema no ritmo atual.

O calendário está em descompasso com os compromissos enviados a Paris. Ao contrário, sugere a quase certeza de ocorrerem mais disputas e mais violência, obstáculos quase intransponíveis para acabar com o desmatamento nas terras sem lei da Amazônia.

O legado vivo de uma ativista assassinada

Se existe uma consequência positiva do assassinato de Dorothy Stang em 2005 é a moratória obtida para as reservas florestais que ela estava tentando proteger.

Essas duas grandes reservas mantêm-se principalmente ocupadas por pequenos produtores comprometidos com a sua visão de cultivo de uma pequena parte da terra, deixando 80% preservado como floresta.

Até o assassinato no mês passado do jovem segurança, Wislen Gonçalves Barbosa, a onda de violência que afeta outras áreas do município de Anapu ao longo da rodovia Transamazônica não chegou às reservas.

“Eles [fazendeiros criminosos] acharam que, ao matar [a Irmã Stang], todos iriam deixar suas terras para eles. Só que eles estavam errados”, disse Antônia da Silva Lima, uma pequena produtora assentada que era amiga de Stang. Na controvérsia que se seguiu ao assassinato, com processos contra os assassinos, os fazendeiros recuaram.

Lima cuida de um monumento em homenagem à freira.  Ela diz que o dia em que Stang morreu, a freira estava caminhando sozinha na reserva em direção a uma reunião quando dois matadores a confrontaram.

“Eles a acusaram de ter uma arma na bolsa e pediram que a mostrasse para eles. Então ela pegou a Bíblia e disse: essa é a única arma que tenho”.

A vida na reserva continua com trabalho braçal. Eles estão longe de qualquer cidade e sofrem com a falta de infraestrutura básica.

Na reserva de Virola-Jatobá, assentados fiéis a Stang estão tentando iniciar seu programa próprio de manejo sustentável da floresta, onde árvores são extraídas seletivamente sem causar dano permanente à mata.

“Quando cortam uma árvore dessas, ela chora, é uma vida”

Isso segue um experimento anterior no Projeto de Assentamento Sustentável que envolvia uma empresa privada. O projeto foi descartado em meio a alegações de que não seguia a lei e estava extraindo muita madeira.

Lima afirma que qualquer derrubada de árvore causa dor a ela. “Se dependesse de mim, eu não derrubaria nenhuma árvore”, ela diz. Apontando para uma castanheira enorme, ela acrescenta: “Quando cortam uma árvore dessas, ela chora, é uma vida”.   

*Matéria originalmente publicada em inglês pelo Financial Times em 10/12/15.

O jornalista Joe Leahy viajou com o projeto Mídia e Amazônia em novembro para Anapu (PA) para retratar a situação local 10 anos após o assassinato da missionária americana Dorothy Stang.  

VER MAIS EM:  http://midiaeamazonia.andi.org.br/destaque/terras-sem-lei-na-amazonia-ameacam-o-compromisso-climatico-brasileiro