A expedição no alto rio Negro de Alfred Russell Wallace (1823-1913), o co-descobridor ao lado de Charles Darwin do mecanismo da seleção natural, continua rendendo dividendos científicos mesmo hoje, 160 anos depois de sua realização.

Um biólogo sueco e outro brasileiro acabam de descrever um dos peixes coletados por Wallace, baseado nas anotações e ilustrações deixadas pelo grande naturalista britânico, pois os espécimes coletados há muito se perderam num naufrágio am alto-mar.

A nova espécie chama-se Crenicichla monicae. É um jacundá com pintas escuras de cerca de 30 cm, um peixe da família dos ciclídeos, a mesma do tucunaré. Para descrevê-lo, os ictiólogos Sven O. Kullander, do Museu Sueco de História Natural, em Estocolmo, e Henrique Varella, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, tiveram que recorrer à análise dos três únicos espécimes conhecidos da espécie, coletados por uma expedição sueca em 1923.

Este trabalho de conotação tanto biológica quanto de história da ciência foi publicado no periódico Copeia  e contou com apoio da FAPESP.

Em 31 de agosto de 1850, o jovem naturalista-viajante Alfred Wallace saiu numa canoa em direção ao alto rio Negro, na confluência com o rio Uaupés, a 900 km de Manaus. A missão de Wallace era reunir uma grande coleção biológica, especialmente de peixes. Ele tinha a esperança de vendê-la a algum museu da Europa no dia em que para lá retornasse.

Wallace não podia contar com dinheiro de família, como era o caso de Darwin, que pôde se dar ao luxo de devotar a vida exclusivamente aos estudos. Wallace precisava dar duro para sobreviver e financiar seu sonho: viajar pelo mundo para conhecer e estudar o mundo natural. Ele permaneceu quase dois anos no alto rio Negro, região que mesmo hoje é isolada, inóspita e pouco explorada. Lá contraiu malária e quase morreu.

Em junho de 1852, voltou a Manaus para, em 12 de julho de 1852, embarcar no brigue Helen rumo à Inglaterra. Após 26 dias de travessia, um incêndio obrigou a tripulação a abandonar o navio. Wallace só teve tempo de salvar seus diários e os rascunhos dos peixes que coletou no rio Negro. Permaneceram à deriva por dez dias, até serem resgatados por um navio vindo de Cuba.

A grande aventura amazônica de Alfred Wallace acabou em tragédia. Sua coleção estava perdida. Menos os seus desenhos, que acabaram depositados no Museu de História Natural, em Londres.

A redescoberta e a descrição da nova espécie de ciclídeo envolveu uma saga com diversos personagens que se desenrolou por mais de um século. A trama começou em 1889, com a publicação do relato da viagem de Wallace pelo rio Negro. Entre 1923 e 1925, uma expedição sueca no Amazonas coletou os três únicos espécimes conhecidos de Crenicichla monicae.

O material permaneceu sem descrição, depositado por três décadas na coleção do Museu Sueco de História Natural. Nos anos 1950, parte daquela coleção foi emprestada a Otto Schindler, o primeiro curador de ictiologia na Coleção Zoológica Estatal de Munique, na Alemanha. Trata-se do mesmo museu onde se encontra a coleção biológica reunida por Spix e Martius no Brasil entre 1817 e 1821.

Schindler estava ocupado reconstruindo as coleções do museu, totalmente destruído num bombardeio em 1944, na Segunda Guerra Mundial. Entre os peixes emprestados do museu sueco havia dois exemplares adultos e um filhote de jacundá com pintas. De acordo com as suas anotações, Schindler percebeu que o padrão de coloração daqueles exemplares representava uma nova espécie ainda sem descrição. E assim ela permaneceu. Com a morte de Schindler em 1959, a localização dos espécimes foi esquecida. Eles ficaram juntando pó num armário do museu de Munique pelos 30 anos seguintes.

Em visita a Munique no início dos anos 1990, o curador de ictiologia do museu sueco, Sven Kullander, reencontrou a coleção perdida de peixes do rio Negro coletada por seus contemporâneos nos anos 1920. Assim como Schindler antes dele, Kullander reconheceu naqueles três espécimes uma nova espécie de jacundá, mas hesitou em descrevê-la, pois o material encontrava-se muito desbotado, ao ponto de apenas ser possível distinguir pintas escuras, que são o diagnóstico da espécie.

Kullander postergou a descrição na esperança de achar novos espécimes em melhor estado de conservação. “Não achamos nenhum outro exemplar em nenhuma coleção europeia, americana ou brasileira,” conta Henrique Varella. “Aqueles três indivíduos são os únicos de que se tem notícia.”

Resgate dos rascunhos

Neste ponto, adentra na história o resgate dos rascunhos de Wallace. Em 2002, a zoóloga Mônica de Toledo-Piza Ragazzo, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, reuniu os desenhos conservados em Londres e os publicou no livro Peixes do Rio Negro (Edusp).

O livro reúne 212 ilustrações que descrevem 180 espécies. Era a conexão que faltava. Na falta de novos exemplares, a descrição foi feita relacionando aqueles três espécimes ao rascunho deixado por Wallace. “Percebemos que o desenho no 46 tinha as pintas bem características, muito parecidas com aquelas dos espécimes de jacundá,” diz Varella.

Wallace descreve o exemplar 46 assim: “Comprimento: 30 a 38 cm. Uma faixa vermelho tênue da ponta das nadadeiras ventrais até a (nadadeira) anal. Olho vermelho alaranjado – narinas únicas próximas aos lábios – escamas delicadas, lisas, regulares – dentes em uma faixa, com aspecto de lima em ambas as maxilas – língua grande livre. Nadadeiras peitoral e ventral claras.” Wallace o coletou em Nossa Senhora da Guia, uma ilha no alto rio Negro à jusante da sua confluência com o rio Içana.

O nome da nova espécie de jacundá, Crenicichla monicae, é uma homenagem à Prof.a Mônica, “pelo seu esforço para recuperar as gravuras de Wallace,” diz Varella. Os ciclídeos formam uma das maiores famílias de peixe de água doce, com cerca de 1.700 espécies em todo o mundo, sendo 550 na América do Sul. Os ciclídeos variam muito de tamanho, indo de uns poucos centímetros, como os pequenos carás, até um metro, o caso do tucunaré. Acredita-se que haja pelo menos duas mil espécies de ciclídeos.

“Ainda há desenhos de Wallace que não foram identificados, o que pode ser devido à falta de acuro dos mesmo ou porque eles correspondem a espécies novas. Por isso, é sempre importante retornar aos estudos mais antigos quando se realiza qualquer análise taxonômica. Eles podem guardar informações valiosas”, disse Varella. Quem sabe alguma daquelas ilustrações possam um dia revelar novas espécies ainda desconhecidas?

E quanto a Wallace? O que lhe sucedeu após sobreviver ao naufrágio em 1852? Desolado com a perda de sua coleção e completamente quebrado, ele passou por dificuldades até conseguir viajar em 1854 ao arquipélago Malaio (a atual Indonésia). Após conhecer a biodiversidade da Amazônia, com seus diversos microbiomas separados pelas barreiras dos imensos rios, Wallace se deparou com uma outra biodiversidade, distribuída pela geografia de milhares de ilhas. Foi lá, em 1858, em meio aos delírios de um acesso da malária que contraíra no Amazonas, que ele disse ter vislumbrado pela primeira vez os princípios do mecanismo da seleção natural. O resto é história.

Wallace descreveu rapidamente sua teoria numa carta que endereçou a ninguém menos do que Charles Darwin, pedindo sua opinião. Ao receber a carta, Darwin percebeu alarmado que corria o sério risco de perder a prioridade no anúncio da teoria em cima da qual estava sentado fazia mais de 20 anos. Correu a escrever um trabalho, que foi lido ao lado da carta de Wallace em sessão da Sociedade Lineana de Londres, em 1o de julho de 1858.

No ano seguinte, Darwin publicou A Origem das Espécies e conquistou os louros da ciência e da história. Quanto a Wallace, permaneceu até sua morte uma figura secundária, ofuscado pela glória de Darwin. O lugar de direito de Wallace como co-descobridor da seleção natural só foi finalmente garantido nas últimas décadas do século 20.

O artigo de Varella e Kullander, Wallace’s Pike Cichlid Gets a Name after 160 Years: A New Species of Cichlid Fish (Teleostei: Cichlidae) from the Upper Rio Negro in Brazil, publicado em Copeia (doi: http://dx.doi.org/10.1643/CI-14-169) pode ser lido em www.bioone.org/doi/abs/10.1643/CI-14-169.

Peter Moon  |  Agência FAPESP