O Yaripo, ou Casa dos Espíritos, como os yanomami chamam o Pico da Neblina, está novamente limpo. O ponto mais alto do país, com 2.994 metros de altitude, na Serra do Imeri, no Amazonas, acaba de receber mutirão de limpeza especial, promovido por servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e representantes do Povo Yanomami e do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

O grupo realizou entre 22 de agosto e 2 de setembro expedição ao cume da montanha, que fica no Parque Nacional do Pico da Neblina, gerido pelo ICMBio. Além de concluir etapa do projeto Arte Física, do artista plástico Cildo Meirelles, e fazer o registro fotográfico do lugar, os expedicionários aproveitaram a permanência por três dias no “teto” do Brasil para recuperar depredações e retirar detritos deixados por pessoas que visitaram o local nos últimos anos.

A expedição foi uma parceria entre o ICMBio, MAM-SP e a Associação Yanomami do Rio Cauaburis e seus Afluentes (Ayrca). Com logística complexa, a permanência da equipe durante três dias no cume demandou grandes esforços e envolveu muitas pessoas, principalmente para contornar problemas como a falta de água no local e garantir a segurança de todos no topo da montanha.

Superação

As dificuldades no transporte de enormes e pesados equipamentos e materiais necessários à expedição foram superadas pelo trabalho conjunto da equipe, mas principalmente pelo apoio oferecido por carregadores yanomami, que aceitaram se aventurar até o cume da “montanha sagrada”.

Antes dessa expedição, havia ocorrido outra, em 2011, para a retirada de placas afixadas às rochas do cume. Segundo o analista ambiental Flávio Bocarde, chefe do parque, que participou das duas campanhas, a remoção teve um efeito pedagógico positivo, pois nenhuma outra placa foi colocada desde então.

Mesmo assim, a recente expedição foi considerada por ele como um marco zero. “Enquanto continuarmos a discussão com os yanomamis, legítimos urihi theri (povos da floresta), sobre a reabertura do parque para o ecoturismo, buscaremos criar um sistema de monitoramento para evitar que novas depredações sejam realizadas no Pico da Neblina.”

Diálogo com Forças Armadas

Nesse sentido, o chefe da unidade admite que será preciso dialogar de forma franca e aberta com as Forças Armadas, que promovem exercícios militares no cume da montanha e são hoje os principais visitantes do Yaripo.

Nessa expedição, relatou Bocarde, foram removidos todos os parafusos e as bases de fixação das placas, descaracterizadas as pichações nas rochas e recolhido todo o lixo presente no cume. “Praticamente a totalidade desses materiais e intervenções tinham sido obra de militares em treinamento durante três décadas de visitação descontrolada”, disse ele.

Ainda segundo o chefe da unidade, foram recolhidas muitas embalagens recentes de rações com brasões timbrados das Forças Armadas, placas comemorativas representando destacamentos militares e cartuchos deflagrados de fuzis. Até mesmo as pichações, eram precedidas pelas patentes dos oficiais, garantiu ele.

“Além dos objetivos de conservação e manejo desse ambiente único de montanha, temos de olhar além, respeitar também a importância de Yaripo para o Povo Yanomami que considera seu cume como a Casa dos Espíritos e base de sua cosmogonia e das relações espirituais que mantém o equilíbrio das forças da natureza”, concluiu o gestor do parque.

A milenar história do Yaripo

Na tradição do Povo Yanomami, a história do Pico da Neblina, o Yaripo, ou a Casa dos Espíritos, remonta há milênios. Relatada pelo conselheiro do Parque Nacional do Pico da Neblina Salomão Mendonça Ramos, a lenda é repassada de geração a geração por meio das lideranças tradicionais indígenas.

Segundo o conselheiro, o Yaripo foi descoberto durante uma visão espiritual pelo ancestral Yoyoma, considerado o haprapi (grande pajé) que habita aquela região. “Antes dos séculos, o Pico da Neblina já tinha nome de Yaripo, colocado pelos espíritos que moram no local”, conta Ramos.

Ao longo da trilha que leva ao alto do monte, há diversos lugares considerados sagrados e espirituais pelos indígenas, alguns decorados para funerais. “Por isso, nós, yanomami, não aceitamos o desenvolvimento de atividades no Parque Nacional do Pico da Neblina sem haver consulta à comunidade indígena”, diz ele, sobre as negociações para a abertura do parque ao ecoturismo sustentável.

“Os nossos pajés famosos já se foram, estão na vida eterna. Porém não se distanciaram. Eles continuam fazendo proteção de nossas vidas espirituais, nos defendendo dos espíritos maus acompanhados e relacionados com a natureza”, afirma o conselheiro do parque, para concluir: “Desejamos ser respeitados de acordo a cultura diferente de todos os povos indígenas do Brasil, inclusive pelas autoridades federais.”

A Terra Indígena Yanomami foi demarcada oficialmente em 1992 pelo governo federal. Estende-se por quase 10.000.000 de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas. Ocupa mais da metade da área do Parque Nacional do Pico da Neblina (2.260.000 hectares). O Povo Yanomami também ocupa vasta porção do território venezuelano onde ainda não possui suas terras reconhecidas pelo governo local.

Comunicação ICMBio