Nos isolados confins da floresta amazônica, os índios Matsés passaram os últimos dois anos metidos em um projeto iluminista: escrever uma enciclopédia capaz de salvar uma cultura à beira da extinção.

Também conhecidos como Mayorunas, os Matsés vivem ao longo do rio Javari, na fronteira entre Brasil e Peru, um lugar tão afastado que, ainda hoje, abriga tribos que nunca foram contatadas.

Para prosperar na região, os indígenas sempre contaram com técnicas particulares de caça, pesca e remédios cultivadas ao longo de séculos pelos xamãs. Cada um desses líderes espirituais possuía um catálogo mental capaz de transformar a mata em uma farmácia viva.

Hoje esse conhecimento é restrito à memória de alguns poucos anciãos, todos com mais de 60 anos. Conforme eles envelhecem e morrem, essas informações ficam perto de sumir da face da Terra.

Foi para evitar esse apagão cultural que, em 2012, cinco dos últimos xamãs da tribo se reuniram para escrever as mais de 500 páginas da Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsés. Nela registraram nomes de plantas, animais, doenças e sua relação com a floresta.

“Essa é uma iniciativa revolucionária pois não houve nenhum forasteiro vindo para documentar esse conhecimento”, disse o médico — e forasteiro — Christopher Herndon, presidente da Acaté, uma ONG norte-americana dedicada a ajudar os Matsés do Peru em projetos de desenvolvimento e sustentabilidade.

Os membros do grupo foram os únicos de fora da tribo a ter acesso ao trabalho e ajudaram com aspectos técnicos do projeto. “A iniciativa foi coordenada pelos líderes Matsés e pela equipe da Acaté, mas a enciclopédia foi toda escrita pelos próprios índios, em suas vilas, usando suas próprias palavras e sua própria língua”, disse.

“Nenhum dos xamãs atuais possuía aprendizes. A sabedoria acumulada ao longo de gerações estava à beira da extinção”

Os Matsés tiveram pouco contato com os homens brancos até os anos 1970. Quando tinham a chance de encontrar um forasteiro, suas escolhas costumavam variar entre o isolamento ou o confronto armado.

Nos últimos cinquenta anos, com a chegada de missionários estrangeiros, o contato com grupos não-indígenas se estreitou. Junto dos pregadores religiosos, veio o tradicional papo furado sobre a superioridade da cultura ocidental e como os conhecimentos tradicionais não valiam nem uma miçanga ou um espelhinho.

Por sorte, na época dos primeiros contatos os atuais xamãs do grupo já eram adultos e tinham iniciado seu aprendizado sobre os poderes curativos das plantas. A conversa dos missionários não colou. Os mais jovens, no entanto, acabaram caindo no conto dos vigários.

“A influência externa acabou levando muitos dos Matsés mais novos a perder o interesse e até sentir vergonha de sua cultura”, disse Christopher Herndon. “Nenhum dos xamãs atuais possuía aprendizes e a sabedoria acumulada ao longo de gerações estava à beira da extinção.”

Depois de um dos principais curandeiros da tribo morrer sem passar adiante seu conhecimento, os anciãos e os líderes das comunidades Matsés decidiram iniciar a enciclopédia. Eles escolheram cinco de seus principais xamãs para cada um deles cuidar de um capítulo da obra. Outros cinco membros mais jovens da tribo ajudaram a escrever os textos e a fotografar as plantas. Todos os curandeiros envolvidos no projeto moravam em aldeias localizadas do lado peruano da fronteira, mas o conhecimento diz respeito a toda região.

As entradas da enciclopédia são categorizadas pelo nome da doença, com explicações de seus sintomas e quais tratamentos devem ser usados. Ao final, todas as informações foram reunidas e passadas para o computador por um Matsés especializado na transcrição escrita de sua língua. A ideia é que o texto seja publicado apenas nesse idioma e nunca seja traduzido. “Nem mesmo para o espanhol, português ou inglês. A obra não será publicada e nem disseminada fora de suas comunidades”, disse Herndon.

O objetivo, diz o médico e explorador, é proteger a cultura de biopirataria. Ele mesmo não será capaz de ler uma só palavra da obra. “Também não foi incluído nenhum nome científico. Nem mesmo as fotos mostram características facilmente identificáveis das plantas.”

O medo não é infundado. O roubo do conhecimento indígena por farmacêuticas e universidades estrangeiras é uma sacanagem com longo histórico na Amazônia. Os Uru-eus-uau-uaus, uma tribo de Rondônia, costumavam usar a resina de uma árvore para fabricar o tike uba, um veneno que passavam em suas flechas e fazia as presas sangrarem até a morte. Uma empresa farmacêutica ouviu falar disso e, como quem não quer nada, pegou amostras da substância. Em laboratório, isolou o princípio ativo e desenvolveu um anticoagulante poderoso. A tribo não recebeu qualquer quantia em dinheiro.

Os próprios Matsés passaram por isso. Na região em que vivem, é comum o uso da secreção da rã Kambô em rituais de caça. Aplicada sobre feridas na pele, ela causa enjoos e vômitos, mas os índios dizem que, depois que passa o piriri, ela dá mais vitalidade, coragem e força para o caçador. Recentemente a indústria farmacêutica confirmou que a secreção continha uma poderosa mistura de peptídeos com potentes propriedades antimicrobianas, vasoativas e narcóticas. As pesquisas levaram ao preenchimento de diversas patentes que, de novo, não reconheciam em nada o conhecimento indígena. Um dos genes da rã foi parar, inclusive, em batatas transgênicas, para protegê-las de infecções com fungos.

O roubo do conhecimento indígena por farmacêuticas e universidades estrangeiras tem longo histórico na Amazônia

Hoje a desconfiança dos índios é tanta que nem as fotos tiradas pela Acaté durante a confecção da enciclopédia — e reproduzidas aqui na reportagem da Motherboard — podem ser usadas livremente. Elas precisaram ser marcadas com o logotipo da ONG para garantir que não fossem empregadas com nenhum outro propósito que não divulgar o trabalho.

A enciclopédia foi finalizada em maio numa reunião que se estendeu por dias na aldeia de Puerto Alegre, uma das mais remotas do lado peruano do território. Durante o encontro, diversas lideranças indígenas, incluindo seis curandeiros, revisaram e editaram a publicação. Ali também foi decidido que a enciclopédia seria apenas o primeiro passo de um projeto maior. Na próxima etapa, os líderes escolherão jovens para acompanhar e aprender com os trabalhos de cada um dos xamãs. “Durante o encontro, os anciãos pediram aos jovens para preencher o vazio que seguirá depois de suas mortes”, disse Herndon, que esteve presente na reunião.

Agora a enciclopédia está sendo impressa pela ONG e será entregue aos Matsés assim que estiver pronta. A esperança dos índios é que suas páginas ajudem a salvar muito mais do que um catálogo farmacêutico. O objetivo é preservar uma visão de mundo construída durante séculos de vivência na floresta. “A medicina dos Matsés é muito mais holística do que a nossa, e a enciclopédia é escrita a partir do ponto de vista de seus xamãs. Ela é a primeira desse tipo no mundo e esperamos que se torne modelo para outras culturas”, disse o médico.

ESCRITO POR GUILHERME ROSA

VER CONTEÚDO COMPLETO EM: A Tribo que Criou a Primeira Enciclopédia Xamânica do Mundo (vice.com) A tribo que criou a primeira enciclopédia xamânica do mundo – 28/07/2015 – Vice – Folha de S.Paulo (uol.com.br)