Em 2005, Jonas de Souza Marcolino escreveu um texto sobre a demarcação e a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que estava em discussão naquele momento. A Terra Indígena foi demarcada e homologada, os não-índios foram retirados e hoje, 2015, começam a surgir debates sobre as consequências econômicas para os indígenas a partir da desintrusão.

POR QUE LUTAR CONTRA A ÁREA CONTÍNUA? 

Demarcar a Terra Indígena Raposa Serra Do Sol de forma não contínua, significa excluir áreas das cidades, vilas, estradas, do Exército, das fazendas e das áreas produtivas, conforme proposta na Carta da Raposa, preservando o seu estado atual.

Várias são as razões que levam os indígenas da SODIURR, ALIDCIR, ARIKOM e COPING a protestarem contra a área contínua, Raposa Serra do Sol. Destacaremos, a seguir, apenas algumas, fazendo breves considerações sobre cada uma delas.

1º –  A luta contra o primitivismo e a miséria  

Todos os índios não querem viver no primitivismo, inclusive os yanomamis, que só vivem naquele estado porque são condicionados, a assim viverm. Os índios da Raposa/Serra do Sol vivem outra realidade. O primitivismo, para eles, significa atraso, sofrimento, é uma vida retrógrada, jamais desejada por qualquer povo. Uma população que caminha a pé, que carrega peso nas costas, que não tem boa habitação, boa alimentação, boa saúde, boas escolas, que não tem segurança e que faz tudo por necessidade de sobrevivência, não pode ser um povo feliz. E assim que ficam condicionados os índios das reservas indígenas homologadas. Como exemplo, temos as reservas Yanomami com 9.664.975 ha e a de São Marcos, com 654.110 ha.

2°- O elevado processo de integração dos índios Macuxi, Wapixana, Ingaricó e Taurepang

Os fatos históricos revelam que os índios das Américas passaram a conviver ou se aproximar dos não índios, logo no início da chegada dos europeus nas Américas. No início do século XX, os índios da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, passaram a ser sedentários, quase na sua totalidade. Isso resultou na criação das aldeias mais antigas da T.I. Raposa Serra do Sol, tais como: Barro, Contão, Limão, Maturuca, Raposa, Serra do Sol, Flexal e Caracani.

De acordo com as declarações de dona Mônica, a ex-moradora mais antiga da Aldeia Camararém, o primeiro branco a aparecer na região das serras, no início do século XX, foi o Sr. Severino Pereira da Silva, mais conhecido como Severino Mineiro, com quem passou a morar ainda quando criança. Foi ele quem introduziu na região o açúcar, o sal, os vestuários, o sabão, etc. Inclusive a prática do garimpo de ouro e diamante, assim como a criação de gado bovino. O Severino Mineiro fundou também, em 1909 a vila Socó e, em 1911, a vila de Uiramutã.

A maioria dos não índios, habitantes daquela região, é miscigenada, descendente dos índios e dos não índios, característica predominante em todos os Estados da Região Norte.

Uma vez conhecida a cultura e os costumes dos não índios é impossível manter os índios numa reserva, onde a assistência dada pela FUNAI é, geralmente, zero.

3°- As reservas homologadas de forma contínua como a de São Marcos e a dos Yanomami garantem a hegemonia da FUNAI, sem perspectiva de exploração da área para o desenvolvimento econômico, senão como uma reserva ambiental em detrimento dos índios.

A FUNAI acredita nos laudos antropológicos, fundamentados, segundo eles, no art. 231 da Constituição Federal e nos seus próprios princípios de formação acadêmica e filosófico-ideológica. Desse modo, podem expedir laudos mentirosos, isto porque, esquecem de fundamentar nos reais interesses dos índios, uma vez que não são indígenas, os pensamentos e políticas indigenistas. O período em que apenas os antropólogos falavam ou escreviam sobre o ser e o existir dos índios passou. Cumpre agora às autoridades competentes, de todas as instâncias de governo, considerar todos os reclamos das autoridades indígenas, porque a razão de ser, ver, sentir e interpretar o mundo pelos índios, não se resume apenas no que dizem os antropólogos, em conquistar grandes extensões de terra para perambularem, senão em conquistar terras indispensáveis ao desenvolvimento econômico e para a sua reprodução fisica, segundo seus usos, costumes e tradições. Vale ressaltar que a Constituição afirma que devem ser demarcadas as terras que os índios ocupam e não que ocuparam, assim como as terras que são destinadas às posses dos índios, são aquelas habitadas em caráter permanente (aquelas habitadas no presente, aqui e agora). Não aquelas terras por sobre a qual perambularam, fixando moradas e depois abandonaram. Isso não é caráter permanente. Vale ressaltar, também, que os usos, costumes e tradições dos atuais indígenas que habitam a questionada T. I. Raposa Serra do Sol, não são as dos seus ancestrais que viveram há mais de séculos, caçando, pescando e extraindo frutas nas selvas.

O usufruto exclusivo das riquezas do solo, rios e lagos existentes nas terras indígenas, garantido pela Constituição Federal, nessas terras homologadas, como Yanomami e São Marcos, supra-mencionadas, tem sido proibido. Como produtores rurais, os índios necessitam desenvolver atividades agropecuárias, com assistência técnica, no entanto, nem isso podem. A FUNAI, como tutora, quer cuidar dos índios, como cuidava em 1967, no ato de sua instituição. Isso é inadmissível.

4º – Com a homologação contínua da T.I. Raposa Serra do Sol, o isolamento dos indios estará decretado.

A Portaria N° 820/98, no Artigo 5°, veda o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios na área delimitada. Como proibir se já habitam há décadas e são descendentes de índios? A quem interessa isso? Aos índios, certamente não. A realidade da Raposa Serra do Sol foi construída por índios e não índios. Dissociá-los, implica a regressão de todos ao atraso. Mas isso é conseqüência inevitável, se for homologada de forma contínua. Não será permitida a presença dos governos municipal e estadual, resultando desse modo, na perda de todas as assistências nas áreas de educação, estradas, transportes, energia elétrica, comunicação e demais assistências sociais, devida aos cidadãos brasileiros. Para isso é que lutam todos os defensores da homologação contínua da T.I. Raposa Serra do Sol, como o CIR[1], a Diocese de Roraima, o CIMI, a FUNAI e seus aliados. Nos últimos trinta anos, essa foi a bandeira levantada por eles. A dignidade humana dos índios, tem sido renegada ao último plano. O quadro de miséria na Raposa Serra do Sol vem se delineando. Se não houver quaisquer medidas tomadas pelas autoridades, a miséria e a pobreza absoluta será inevitável.

Propor a retirada dos não índios da T.I. Raposa Serra do Sol é, no mínimo, deixar de observar o que preceituam os art. 1°, 3°, 5°, 6° e 37 da CF. Isso só poderá ocorrer se todos os não índios concordarem em deixar as terras do Brasil, que “são dos índios”, o que é impossível de acontecer. Logo também é impossível tirar os não índios da T. I. Raposa Serra do Sol. Como um dos objetivos da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação, a decisão mais eficaz para concretizar esse objetivo é demarcar a Raposa Serra do Sol de forma não contínua, de maneira que preserve o estado atual, garantindo espaço para todos os brasileiros.

O isolamento dos índios na reserva Raposa Serra do Sol, poderá ter as seguintes consequências:   

a) Maior possibilidade de manter os índios excluídos da sociedade envolvente e preservá-los no obscurantismo.

A exclusão dos índios do processo socioeconômico será mantida através da política indigenista, desenvolvida pela FUNAI e por diversas ONGs que não acompanharam a evolução das comunidades indígenas, não ousaram conhecer as verdadeiras aspirações dos índios e nem levaram em consideração os seus diferentes estágios de integração à comunhão nacional. Se assim tivessem procedido, teriam ciência de que os anseios dos índios é a busca dos bens de capital para implementarem seus projetos de desenvolvimento agropecuário e outras atividades econômicas, empregando os instrumentos, as técnicas e os modos de produção modernos que possam favorecer suas produções nos aspectos qualitativo e quantitativo ou até mesmo a busca de um emprego digno, uma vez que já estão participando dessa sociedade capitalista movimentada pelo consumismo.  

b) Marginalização e escravização dos índios.

Muitos índios prestaram trabalho escravo aos padres ou foram explorados de alguma maneira. O tuxaua Danilo do Monte Muriat II, disse que trabalhou para o Jaci e para o padre Jeorgio, pegando ouro e diamante, sem direito de vender um ponto de ouro, com a promessa de ganhar 20 reses por ano e não ganhou nenhuma até hoje. Se não for implementada, nas comunidades indígenas, educação técnica, científica e humanística, a possibilidade de escravidão dos indígenas será uma consequência inevitável

c) Predominância de políticas alienígenas   

A fundamentação filosófica e ideológica dos programas desenvolvidos pelo CIR e OPIR é de natureza alienígena, porque 99% dos tuxauas que compõem a SODIURR atualmente, eram do CIR e cada um deles é testemunha ocular das políticas e estratégias indigenistas, que gradativamente, foram implantadas na sociedade indígena até chegarem a organizá-los e colocá-los contra os brancos e contra o próprio Estado Nacional Soberano. Isso pode, no futuro próximo, obstaculizar em definitivo os programas de governo dos Municípios, do Estado e da União Federal, como já está ocorrendo antes de se concluir o processo de demarcação. Esses indigenistas, vinculados às ONGs estrangeiras, ignoram os sofrimentos porque passam os indos, por falta de uma política que incentiva atividades produtivas e por falta de implementação de projetos de assistência social eficiente. Por isso, até hoje vivem miseravelmente sobre uma terra potencialmente rica. Pois não basta apenas abundância de riquezas e recursos, se não houver uma sociedade com princípios e valores que lhes possam fazer felizes.

Como já mencionado anteriormente, o interesse dos índios é desenvolverem-se, a fim de elevar sua qualidade de vida em todos os seus aspectos. Trabalhar contra isso é desrespeitar os anseios da população indígena. Por isso precisam como nunca de políticas públicas que incentivem atividades produtivas, especialmente no setor primário de produção. Por tanto, precisam de assistência técnica dos órgãos competentes.

d) Desvios de recursos financeiros destinados à população indígena. 

Para exemplificar, citaremos os programas de atendimento á saúde indígena, resultante do Convênio firmado entre o CIR e a FUNASA. O programa só tem favorecido às comunidades ligadas ao CIR. Os Polos-Base, que deveriam ser equipados como previsto no programa, com um rádio de comunicação funcionando 24 horas, um enfermeiro de nível superior, uma ambulância e principalmente, remédios, não cumprem as diretrizes. Como exemplo, tomemos o Polo-Base da Maloca Canta Galo que às vezes não tem um analgésico para atender os pacientes. Dinheiro para isso foi repassado através dos convênios, mas para onde foi não se sabe. Para confirmar isso, segundo os dados informados pela SIAF-Brasília-DF em 30/04/03 às 10:25, foram sacados, de setembro de 1999 a abril de 2003, pela URIHI, R$ 28.998.746,71(vinte e oito milhões, novecentos e noventa e oito mil, setecentos e quarenta e seis reais e setenta e um centavos). Pela DIOCESE DE RORAIMA, entre outubro de 1999 a março de 2003, R$ 6.359.950,74 (seis milhões, trezentos e cinquenta e nove mil, novecentos e cinquenta reais e setenta e quatro centavos) e pelo CIR, entre Abril de 1999 a Março de 2003, R$ 21.610.884,03 (vinte um milhões, seiscentos e dez mil, oitocentos e oitenta e quatro reais e três centavos). Esses montantes de recursos financeiros não revolucionaram a saúde indígena, os quais continuam ainda sofrendo várias epidemias. Se tivessem sido aplicados em prol da melhoria das condições de saúde indígena e do abastecimento de água e saneamento básico, os índios teriam atendimento de primeiro mundo nessas áreas. Acontece que parte desse recurso é destinada para promover reuniões a fim de se planejarem ações para retirada dos não-índios, como declarou um agente de saúde do Contão que foi convidado a uma reunião sobre saúde, todavia, foi surpreendido com o assunto sobre a retirada dos lavoureiros.   

e) Conflitos étnicos por espaços territoriais resultantes das invasões.

Os conflitos étnicos dar-se-ão somente se houver a falta de respeito das áreas de outras comunidades, como tem ocorrido nessas duas últimas décadas, pelos indígenas ligados ao CIR. Um exemplo prático ocorreu logo após a publicação da Portaria 820/98. Um grupo de índios, liderados pelo então tuxaua do Maturuca, Sr° João Onça, desceram às Placas (entroncamento da RR 171 com a RR 202, próxima ao Contão) com o propósito de construírem uma aldeia com cinqüenta casas, alegando que tinham obtido a vitória desejada e que os índios que lutaram pela área única teriam o direito de morar onde quisessem. Em contrapartida, aqueles que fossem contra, como a própria comunidade do Contão, deveriam sair junto com os brancos. Essa ameaça do CIR, em expulsar os índios que querem manter convivência harmoniosa com os não índios, se for concretizada, será a razão suficiente para se instalar o conflito entre os próprios índios. Pois a posição contrária dos indígenas, não implica dizer que querem sair de suas áreas junto com os brancos, se saírem. Antes disso, pretendem garantir espaços para os seus compatriotas brasileiros, habitantes tradicionais daquela área, que muito têm contribuído em beneficio dos índios.

 Portanto, Senhor Presidente, os índios Macuxi, Ingaricó, Wapixana e Taurepang querem a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, nos moldes propostos pelo então Ministro da Justiça, Nelson Jobim. Queremos, sobretudo, participar do desenvolvimento sustentável: social, cultural e econômico, não apenas o ambiental como querem os ambientalistas. Saímos do primitivismo, adquirimos novos valores e precisamos ser instrumentalizados para um progresso humanístico, científico e tecnológico, e, desse modo, contribuir para a grandeza de nossos municípios, do Estado de Roraima e da Nação brasileira.

Boa Vista, 28 de fevereiro de 2005.

 Jonas de Souza Marcolino – Professor

Texto de autoria de JONAS DE SOUZA MARCOLINO, Professor, estudante de Direito, Macuxi de nascimento e líder indígena atuante na área Raposa Serra do Sol.

[1] CIR – Conselho Indígena de Roraima : controlado pela Diocese de Roraima e pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário, organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). O CIMI mantém ligações estratégicas com o CMI – Conselho Mundial de Igrejas ( com sede na Suíça) principalmente com seu segmento o ISA – Instituto Socioambiental.

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