Produzida pelas organizações indígenas Hutukara e Horonami em parceria com o ISA e a Wataniba, a publicação apresenta de maneira inédita e integrada informações de localização das comunidades, infraestrutura e diversidade sociolinguística.         

Com o objetivo de auxiliar as organizações indígenas e as instituições públicas de Brasil e Venezuela no planejamento de ações e políticas que incidem sobre estes territórios, a publicação é resultado de um esforço conjunto das organizações indígenas Hutukara e Horonami, com a ajuda de seus parceiros ISA e Wataniba, para sistematizar e tornar públicas importantes informações geográficas.

Em Boa Vista, a divulgação se deu em um ato público na sede da Hutukara, na sexta-feira, 8 de maio, com a presença de representantes da Universidade Federal de Roraima, Inpa e Ibama. Em Brasília, o mapa foi apresentado durante reuniões realizadas, entre 23 e 27 de março de 2015, junto a Funai, Secretaria Especial de Saúde Indígena, Ministério Público Federal, Ministério da Defesa, Ministério da Cultura e Itamaraty. Intitulada Território e comunidades Yanomami Brasil-Venezuela 2014 a publicação foi muito bem recebida pelas instituições brasileiras, que identificaram na cartografia binacional uma importante ferramenta para tratar de temas complexos que afetam os povos Yanomami e Ye’kwana nos dois países.

O mapa, por exemplo, pode auxiliar o atendimento à saúde de comunidades isoladas na fronteira e o combate à oncocercose (doença transmitida por um mosquito que ataca o tecido conjuntivo e entre outros males, provoca cegueira) – o território Yanomami é o último foco da doença nas Américas. Outro ponto de destaque da publicação é sua contribuição para o diálogo entre as organizações indígenas e o poder público, à medida em que torna visível alguns aspectos do território Yanomami que até então eram desconhecidos pelos não indígenas. “Produzir um mapa que seja nosso é uma tentativa de sermos mais bem compreendidos nas nossas demandas e na nossa luta. O mapa é uma ferramenta dos brancos. E, por isso, este mapa é a forma que encontramos de falarmos a mesma língua.”, afirmou o diretor de gestão territorial da Hutukara, Armindo Góes Melo.

Território e comunidades Yanomami Brasil-Venezuela

Os Yanomami formam uma sociedade de caçadores-agricultores do norte da Amazônia cujo contato com as sociedades nacionais é, na maior parte do seu território, relativamente recente. Apresentam uma população estimada de 36.000 pessoas, distribuídas em 706 aldeias, sendo 291 no extremo noroeste da Amazônia Brasileira e 415 no sul da Venezuela. E, constituem um conjunto cultural e linguístico composto de, pelo menos, cinco subgrupos que falam línguas da mesma família: Yanomam, Yanomam?, Sanöma, Ninam e ?aroamë.

Seu território abrange aproximadamente 23 milhões de hectares de floresta tropical contínua, situada em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela na região do interflúvio Orinoco-Amazonas (afluentes da margem direita do Rio Branco e esquerda do Rio Negro), e que tem como centro de dispersão histórica a Serra do Parima.

No Brasil, são cerca de 22 mil que vivem na Terra Indígena Yanomami, área 9.664.975 hectares de floresta contínua, reconhecida como de ocupação tradicional, demarcada e homologada pelo governo brasileiro por meio de um decreto presidencial, assinado em 25 de maio de 1992.

Na Venezuela, por sua vez, registram-se outros 14 mil yanomami, mas muitas das comunidades não têm relações estabelecidas com a sociedade envolvente e se estima que 35% dessa população na Venezuela nunca foi recenseada. Boa parte de seu território está protegido pelas figuras jurídicas dos Parques Nacionais Parima Tapirapecó, Serranía e La Neblina, a Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare e vários monumentos naturais. Porém, este regime não garante aos Yanomami os mesmos direitos dos territórios indígenas previstos na constituição venezuelana. E, por isso, os limites dos parques atualmente coincidem também com a proposta de demarcação em preparação pela Horonami Organización Yanomami.

Outra parcela significativa do território yanomami na Venezuela, de uso compartilhado com o Povo Ye’kwana, localiza-se nas bacias dos rios Padamo, Cunucunuma, Ventuari e Caura, e tem seus limites em concordância com as propostas de demarcação apresentadas pelas associações Kuyujani Originario, Kuyunü y Kuyujani. E, finalmente, há ainda a área de ocupação Ninam nas cabeceiras do Rio Parágua, que ainda não tem uma proposta de demarcação definitiva.

Uma das maiores e mais importantes áreas contínuas de floresta tropical do mundo

Com efeito, somando estas áreas, o território yanomami compreende uma das maiores e mais importantes áreas contínuas de floresta tropical do mundo, com baixíssimos índices de desmatamento e degradação florestal, e de reconhecida importância para a conservação e produção da biodiversidade, já que o conhecimento dos Yanomami sobre a sua terra-floresta (urihi) é de uma riqueza excepcional.

Para os Yanomami, urihi, a terra-floresta, não é um mero espaço inerte de exploração econômica (o que chamamos de “natureza”). Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Ela tem uma imagem essencial (urihinari), um sopro (wixia), bem como um princípio imaterial de fertilidade (në rope). Os animais (yaropë) que abriga são vistos como avatares dos antepassados míticos homens/animais da primeira humanidade (yaroripë) que acabaram assumindo a condição animal em razão do seu comportamento descontrolado, inversão das regras sociais atuais. Nas profundezas emaranhadas da urihi, nas suas colinas e nos seus rios, escondem-se inúmeros seres maléficos (në waripë), que ferem ou matam os Yanomami como se fossem caça, provocando doenças e mortes.

No topo das montanhas moram as imagens (utupë) dos ancestrais-animais transformadas em espíritos xamânicos xapiripë, deixados por Omama para que cuidassem dos humanos. Toda a extensão de urihi é coberta pelos seus espelhos onde brincam e dançam sem fim Assim, a proteção desse território é considerada pelos Yanomami como fundamental não apenas para a garantia dos recursos necessários para a sua sobrevivência, mas também para o equilíbrio do mundo e o controle das forças que promovem a sua ordem cosmológica: a fúria dos trovões e dos ventos de tempestade, a regularidade da alternância do dia e da noite, da seca e das chuvas, a abundância da caça, a fertilidade das plantações, etc. Não são pequenos, porém, os problemas enfrentados pelos Yanomami para garantir a proteção de sua terra-floresta. O garimpo ilegal, a invasão de caçadores, pescadores e madeireiros não indígenas, estimulados pelo avanço da fronteira agroextrativista em ambos os países, trazem inúmeros prejuízos ao meio ambiente e às comunidades. No auge da corrida do ouro no território brasileiro (nas décadas de 1980 e 1990) o número de garimpeiros na área yanomami foi, então, estimado em 30 a 40.000, cerca de cinco vezes a população indígena ali residente. Embora a intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuído muito a partir do começo dos anos 1990, até hoje núcleos de garimpagem continuam encravados no território yanomami, de onde seguem espalhando violência e graves problemas sanitários e sociais.

Além disso, deve-se notar que 54,77% do território yanomami no Brasil está coberto por processos minerários registrados no Departamento Nacional de Produção Mineral por empresas de mineração públicas e privadas, nacionais e multinacionais. Enquanto que na Venezuela, apesar da existência de um marco legal que proíbe a mineração no estado Amazonas, a nova política mineral do Estado, promovida pelo Governo desde 2011, inclui a exploração de minerais ao sul do Orinoco no chamado “Arco Minero del Orinoco”, em convênio com diferentes países e empresas transnacionais, em particular com a empresa chinesa CITIC Group.

Frente a estes desafios cabe aos yanomami e seus aliados a difícil tarefa defazer cumprir as leis brasileiras e venezuelanas, afiançar o respeito aos seus direitos, diante dos mais diversos interesses econômicos que teimam em ignorá-los. E, é neste contexto que as organizações indígenas (Hutukara, Ayrca, Kurikama, Texoli e Apyb no lado brasileiro; e Horonami, Suyao, Kuyujani Kuyujani Originario e Kuyunü no lado venezuelano) vêm despontando como novos e importantes atores, na perspectiva de se fazerem mais visíveis na luta para garantir a proteção de seu território e o respeito às suas especificidades culturais em ambos os países.

Por: Estevão Benfica Senra
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental 

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