A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou as lideranças indígenas e seus aliados e parceiros para participarem do Acampamento Terra Livre (ATL), “Em defesa das terras e territórios indígenas”, em Brasília, entre os dias 13 e 16 de abril. A mobilização na capital ocorre simultaneamente a atos em diversas regiões do Brasil. Essa movimentação política dos povos indígenas emerge num momento crucial: o Congresso mais conservador desde o golpe de 1964 mira fulminar os direitos sociais da Constituição Federal, incluindo os direitos fundamentais dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais.
Um momento difícil de luta – pois intenso e sob grandes riscos de retrocesso – convida a pensar ao passado, aos anos em que esses direitos foram conquistados igualmente por muitas lutas sociais, capitaneadas, em diferentes momentos, por agentes políticos de destaque. E acontece que, justamente na hora em que emergem com força política as classes dos inimigos dos índios, como evangélicos fundamentalistas, governistas e empreiteiros desenvolvimentistas, mineradores e garimpeiros e ruralistas agrobandidos, é quando uma geração de lideranças indígenas está, como alguns povos dizem, “fazendo a passagem”, deixando esse mundo para um outro.
O impacto do falecimento de grandes lideranças, me explicou Ailton Krenak, é tremendo para um povo. Ali se vai uma “biblioteca”, como ele diz, e que é difícil de ser reposta. Ailton lembrava do recente falecimento de Aniceto Tsudzawere, líder Xavante; Payaré, líder Gavião; Geraldino, líder Rikbatsa. E, em meio a esses tristes espaços políticos esvaziados pela ausência, nos dias que antecedem a mobilização dos povos indígenas, pensamos em publicar algumas memórias de lideranças que nos deixaram para ajudar a estimular as gerações que estão no front de batalha – nem só os indígenas, mas aliados, simpatizantes, e todxs aquelxs que não querem assistir, omissos, mais genocídios.
Nessa série que pretendo dar vazão nesse blog, a primeira memória é para o chefe kayapó Mro’ô.
O valor é parte da vida
Em meio a tantas turbulências e desastres que marcam o início desse ano, um especialmente vai ser sentido profundamente e por muito tempo na Amazônia: a partida prematura do chefe kayapó Mro’ô.
Mro’ô era meu amigo pessoal, e por quem eu nutria grande admiração. Eu havia sido apresentado a Mro’ô pelo chefe da Funai no sul do Pará, Odenildo Coelho, em meados da década passada. E desde então acompanhava a luta de Mro’ô e dos kayapó contra as intensas – e violentas – forças do sul do Pará: grileiros, madeireiros, garimpeiros, a grande mineradora Vale e seus avatares atrás de níquel e cobre, além de ferro, pecuaristas, prefeitos inescrupulosos, funcionários públicos corruptos, polícia racista. Nunca foi fácil ser kayapó no sul do Pará.
Mro’ô faleceu logo no primeiro dia do ano, em sua casa na aldeia Turedjam. Ele havia passado mal à noite, e seus familiares tentaram levá-lo de carro até o hospital mais próximo, na cidade de Ourilândia do Norte, mas ele não resistiu. A causa da morte diagnosticada pelos enfermeiros na aldeia foi “natural” — não se sabe se ele teve problemas cardíacos decorrente de diabete, ou se uma infecção a partir de uma ferida, ou se foi alguma outra coisa difícil de ser explicada.
Mro’ô era neto do grande Coronel Pombo, poderoso chefe kayapó no sul do Pará que fundou a aldeia Kikretum, após resolver conflitos na poderosa aldeia Gorotire. Os kayapó enfrentavam, nos anos 1980, a invasão de garimpeiros em busca de ouro, madeireiros para dilapidar o mogno e grileiros, incluindo aí o Incra. Como essa extração predatória dos recursos era organizada pelo próprio governo e com anuência de funcionários da Funai da época, que negociavam, por exemplo, as madeiras, os kayapó, como forma de resistência, tomaram o controle da mão desses intermediários.
Passaram, posteriormente, eles mesmo a gerir esse saque de recursos. Foi a dura experiência ao longo dos anos, descobrindo que os madeireiros e os garimpeiros mudavam de lugar, mas o território, devastado, permanecia lá, que os kayapó decidiram por fim a essas práticas. Essas práticas duraram anos, até o início dos anos 2000.
Mro’ô foi uma das principais lideranças nesse processo de mudança, sempre bastante conflituoso internamente.
Ele fundou a aldeia Turedjam em 2009, depois de se separar do Kikretum, que havia sido criada por Pombo. Turedjam está localizada próxima a cidade de Ourilândia do Norte, a cerca de quarenta minutos de carro (que um garimpeiro me contou que faz em menos de 20 minutos na sua D20). Mro’o previu que o inchaço populacional de Ourilândia, produzido pela especulação em torno da chegada de um grande frigorífico e da abertura de uma mina de níquel da Vale, a Onça Puma, ameaçava a integridade do território kayapó: mais invasores, mais pressão sobre os recursos, sobre a madeira, a pesca, o garimpo, e o aliciamento dos jovens. Mesmo que nos relatórios de impacto do projeto isso não ficasse claro – relatório que os kayapó estiveram ausentes da sua elaboração – eles sabiam que precisavam se fortalecer e se preparar.
Aproximar-se da cidade para ter acesso a certos benefícios, como infraestrutura, saúde e escola, foi uma necessidade diagnosticada pelos kayapó. A estratégia da resistência pensada por Mro’ô seria construída tanto no plano politico quanto cultural: a capacitação política de jovens lideranças, e a força dos elementos mobilizadores da cultura tradicional. Portanto, além de reuniões, também havia muita festa tradicional, muita dança.
Nesse intenso processo político-cultural, Mro’ô quis agregar tecnologias, com uma nova pedagogia, treinamentos com câmeras de vídeo, internet, texto. Na aldeia, discutia-se como criar blogs, preparar denúncias, filmar atividades ilegais, assim como a realização de filmes criativos, músicas pop (que o antropólogo Glenn Shepard Jr, amigo dos kayapó, chama de “Kaya-Pop”), assistir jogos de futebol na casa dos guerreiros.
Não adiantava mais fugir dos brancos ou enfrentá-los apenas com armas, flechas e bordunas, estratégias que deram certo para garantir uma grande porção do território das invasões do passado. Hoje, sabiam, tinham de enfrentar outras dimensões do capitalismo e do avanço territorial (até o ar queriam negociar, me dizia Mro’ô, com cara de interrogação sobre o mecanismo de REDD+ e créditos de carbono). Mro’ô tinha muitas dúvidas sobre como traçar essas estratégias e, por isso, como um grande chefe, ele sabia escutar. Queria decifrar mecanismos de exploração e proteger a cultura e a diversidade do seu território. E sua aldeia estava sempre aberta para os diálogos com o mundo exterior.
Mro’ô era um benhadjourore, como se chama a chefia tradicional dos kayapó. Os benhadjourore são aqueles chefes cujo poder é exercido com discrição, respeito, distribuição tanto de bens materiais quanto das falas. Um chefe que mais ouve do que fala, cujo poder é quase um “não-poder”. O poder mesmo é exercido pelos gritos característicos que só esses chefes sabem pronunciar, as expressões de ben, em caso de catástrofes naturais, guerra, mudanças da aldeia.
Pouco antes da Rio+20, em 2012, no Rio de Janeiro, visitei a aldeia Turedjam, e Mro’o me disse que gostaria muito de ir participar e ver como esses grandes encontros aconteciam. O amigo Fernand Alphen, um grande admirador dos kayapó, doou as passagens, e Odenildo Coelho, da Funai, deu o apoio fundamental local para a logística. Vieram Mro’ô e seu irmão Bep-Irax – outras comitivas kayapó seguiam em paralelo com diferentes apoios. Assim que o recebi no Galeão, Mro’ô viu a gigante Bahia de Guanabara e ficou maravilhado com toda aquela água e me perguntou: “Piripi, tem peixe ai nessa lagoa, dá pra pescar”. Pois é, Mro’ô, tem, mas tá poluído: “Kuben (“branco”) sujou tudo”.
Seguimos o trajeto para Santa Teresa, de onde ele viu o Cristo Redentor. Ficou deslumbrado com a vista das praias, a quantidade impressionante de água (ele não conhecia água salgada), e sentiu-se familiar com os morros e a floresta.
Na Cúpula dos Povos, Mro’ô falou sobre soberania alimentar numa mesa redonda, e que grande parte da força da cultura de seu povo vem dessa estreita relação com o território. Juntou-se a seus parentes kayapó, que encontrou na cúpula e no alojamento coletivo no sambódromo, uniu força nas manifestações, e com sua borduna em mãos foi até o BNDES que, sabia já ele, financiava tanto o frigorifico quanto a mineração que ameaçam seu território. Tentou entrar na sede da conferência da ONU, sendo barrado ao lado de seu tio Raoni. Discutiu com várias lideranças indígenas a situação politica, posou para fotos, e teve um ótimo momento. Me disse muito contente que gostaria de voltar numa próxima jornada dessas: “Sempre que tiver, pode me chamar que eu vou lá lutar.”
A última vez em que visitei a aldeia Turedjam foi em novembro passado, junto de Glenn Shepard. Fomos, como sempre, muito bem recebidos por Mro’ô e os kayapó. Glenn é antropólogo do Museu Goeldi e tem uma grande amizade com kayapó. Já organizaram exposição em conjunto, e entre diversas parcerias que fazem, constroem juntos um belo projeto de cinema, em que são treinados no cinema por Glenn, que tem grande experiência e talento, além da antropologia, também no audiovisual, com importantes prêmios internacionais por trabalhos realizados para grandes canais de TV. Glenn acompanhou, em março, três kayapó, entre eles Krakrax, de Turedjam, para uma série de conferências e uma turnê nos Estados Unidos, onde foram mostrar os filmes que realizam. Acompanhei a viagem pelos relatos de Glenn e pelas fotos alegres que todos postavam no Facebook.
A estadia na aldeia foi um momento de encontro e muita conversa – em alguns casos, entrevistas abertas que aconteciam para ambos os lados, eu e Glenn perguntávamos coisas, mas eles nos perguntávamos muitas coisas também.
Num desses momentos, a conversa enveredou sobre o capitalismo – puxada por mim e minha formação marxista. Falamos sobre o capitalismo, como ele vê esse sistema, sobre a pressão da Vale sobre eles, e sobre valores. Queria entender como Mro’ô percebia a atividade extrativista, o funcionamento da extração de minérios para exportação, e qual seria a diferença do processo da Vale para outra, digamos, “mega-garimpeira”.
Mro’ô me disse que achava complicado entender a rede comercial por trás do minério, a cadeia que se forma nessa produção, cujo lugar de transformação industrial fica tão longe. Parecia mais fácil, no caso dos kayapó que aceitavam, negociar com os garimpeiros. Mro’ô era contra o garimpo, e era contra a Vale. O valor da terra para ele era diferente.
Perguntei ao chefe qual era o valor de uma montanha que estávamos vendo naquela hora, logo a nossa frente, vista da aldeia. Montanha linda, e os kayapó gostam de fazer aldeia em frente a montanhas. Eu disse a ele que se trouxesse um geólogo para medir a concentração de minério, fazer um inventário, e levar isso para a bolsa de valores de Nova York, os kuben (“brancos”), poderiam dizer quanto ela vale, por quanto ela poderia ser trocada em dinheiro. Falei que assim funcionava o “valor de troca” no sistema capitalista, diferente do “valor de uso”, mas o valor pelo qual aquilo poderia ser trocado por dinheiro. Ele achou esse meu comentário um tanto estranho. Olhou para mim e para o Glenn, olhou para a montanha e disse palavras que não esqueço (inclusive, no som com que foram pronunciadas):
“Não tem valor. Essa montanha, não tem valor. Ela é parte.”
Não consegui, ainda, encontrar o áudio da gravação dessa entrevista que fizemos – nós iríamos nos reencontrar agora em abril e a conversa seria continuada. Mas parece que Mro’ô continua me falando algumas frases como essa: Não tem valor. É parte.
Mro’o tinha uma delicadeza especial no exercício de sua chefia. Fazia ajudar a pensar e a refletir, e não a dizer as respostas prontas. Era uma inspiração para seu povo e para seus amigos. Nessa sutileza, sempre foram marcantes, na sua personalidade, o caráter e a lealdade ao seu povo e seus aliados.
Por: Felipe Milanez
Fonte: Carta Capital
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http://amazonia.org.br/2015/04/mro%e2%80%99%c3%b4-um-grande-chefe-kayap%c3%b3-que-nos-deixou/
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