Em recente decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o conceito de terra tradicionalmente ocupada foi violentamente atacado. O ministro do STF Teori Zavascki afirmou que “renitente esbulho [tomar posse do que pertence a outrem, insistentemente] não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada”. Segundo o ministro, apenas em caso de conflito contínuo por posse, seja armado ou judicial, caracterizaria-se o despojo constante de direitos e territórios tradicionais indígenas.
Em 2009, no processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, os juízes do STF elegeram a data de promulgação da Constituição Federal (1988) como marco temporário para caracterizar a referida tradicionalidade sobre a terra, ressaltando, no entanto, o chamado “renitente esbulho” como fator para os índios não habitarem todas as suas terras tradicionais. Essa ressalva, em teoria, garantiria o direito dos povos tradicionais às suas terras, mesmo não vivendo nelas naquele marco temporário. Com a decisão do ministro Zavascki, a garantia “subiu no telhado”.
Fosse a interpretação do ministro levada ao pé da letra, os índios deveriam estar presentes fisicamente em suas terras no ano de 1988, inclusive naquelas ocupadas por fazendeiros e grileiros, lutando contra armas de fogo para caracterizar o “esbulho”. Ou seja, na leitura do ministro, só a guerra física legitima a jurídica.
Para Danicley Aguiar, coordenador da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a interpretação de Zavascki está equivocada: “os índios nunca desistiram dos territórios que foram ocupados. O renitente esbulho é regra e foi construído para resolver o princípio do marco temporário. Um juiz não pode dizer para um índio que não tem condições de luta, recursos financeiros ou um advogado que ele não lutou, que ele desistiu”.
Segundo Aguiar, além de injusta com a resistência histórica dos povos indígenas do Brasil, a interpretação abriria espaço para que grandes áreas de floresta griladas de Tis na Amazônia sejam beneficiadas e juridicamente incorporadas ao agronegócio brasileiro.
O que apenas incentiva o trabalho de grileiros e posseiros, segundo Cléber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). “A decisão fala para os inimigos dos povos indígenas que vale a pena usar do mecanismo de desocupação forçada. Os esbulhos que foram cometidos há tempo – e ainda são até hoje – serão validados perante a lei”, completou ele.
A resistência do Povo Xavante (Mato Grosso) é um exemplo de que a decisão do ministro não condiz com a realidade. Na década de 1960 os Xavante foram retirados à força de seu território, abrindo espaço para a invasão de latifundiários e posseiros. Empresas multinacionais compraram terras dentro do ancestral território indígena – hoje a homologada TI Marãiwatsédé – e fazendeiros ocuparam a área até janeiro de 2013, quando um auto da Justiça obrigou sua desintrusão. Vale lembrar que daquela época em diante, cerca de 90% da terra foi desmatada – ela é considerada um dos territórios mais destruídos da Amazônia.
“É uma decisão totalmente articulada com outros poderes. Eles tentam colocar isso como interpretação, mas é uma decisão politica para inviabilizar o processo de demarcação de Terras Indígenas”, afirma Sonia Guajajara, liderança nacional indígena que integra a coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Para ela, “o próprio Judiciário está incitando o conflito. Nem sempre os povos indígenas lutaram com armas. Nem sempre lutar significa estar em conflito, para nós. A saída dos territórios, muitas vezes, se deram por pura expulsão”.
As articulações da bancada ruralista que, em paralelo, reaviva a PEC 215 no Congresso Nacional, estão chegando em outras esferas de poder além do legislativo. “O lobby já chegou no Judiciário. Não são mais decisões a partir da análise jurídica, e sim de teor político. O agronegocio está espalhado nos três poderes”, avalia Sonia.
“O índio não precisa estar com o arco e flecha na mão, apontado para o fazendeiro, para ser válida sua luta”, conclui Danicley Aguiar.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi intimada a apresentar parecer sobre a decisão, que ainda deve ser analisada pelos outros ministros que formam o pleno do STF. Caso esse plenário mantenha a decisão, pode haver um recrudescimento dos conflitos, levando a ainda mais mortes no campo.
Fonte: Greenpeace Brasil
VER MAIS EM:
http://amazonia.org.br/2015/03/resistir-tambem-e-lutar/
NOTA
INFORMATIVO Nº 774
TÍTULO Renitente esbulho e terra tradicionalmente ocupada por índios (Transcrições)
PROCESSO RHC – 125112
ARTIGO Renitente esbulho e terra tradicionalmente ocupada por índios (Transcrições) (v. Informativo 771) ARE 803.462-AgR/MS* RELATOR: Ministro Teori Zavascki Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014. 3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. 4. Agravo regimental a que se dá provimento. RELATÓRIO: Trata-se de agravo regimental contra decisão que, em demanda em que se discute a respeito da natureza indígena de área de terras situada no Município de Aquidauana, Estado do Mato Grosso do Sul (Fazenda Santa Bárbara), conheceu de agravo para negar seguimento a recurso extraordinário aos fundamentos de que (a) a Súmula 650/STF não se aplica ao presente caso, por tratar-se de hipótese diversa; (b) “embora o marco temporal de ocupação de um determinado espaço geográfico por determinada etnia aborígene, para fins de reconhecimento de que se trata de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, seja a data da promulgação da Carta Magna (5 de outubro de 1988), o renitente esbulho por parte de não índios não é hábil a descaracterizar a tradicionalidade da posse nativa” (fl. 3086); (c) dissentir das conclusões do acórdão recorrido demandaria o reexame de fatos e provas, providência vedada pela Súmula 279/STF. Sustenta a parte agravante, em suma, que (a) na verdade, o entendimento da Súmula 650/STF foi firmado no julgamento do RE 219.983, caso idêntico ao presente, em que se assentou que apenas as terras atualmente ocupadas por índios pertencem à União; (b) o Tribunal Regional Federal da 3ª Região considerou existente o renitente esbulho com base em “três súplicas formalizadas apenas por dois índios Terena, setenta anos depois de a Fazenda Santa Bárbara ser titulada, em 1914, pelo então Estado de Mato Grosso” (fl. 3100); (c) “em nenhuma dessas reclamações há menção de que os proprietários da Fazenda Santa Bárbara esbulharam a posse deles ou vice-versa” (fl. 3100); (d) “são pedidos genéricos com o fito de expandir os lindes da Aldeia Limão Verde, feitos em torno de quatro décadas depois da pretensa saída dos indígenas das terras em litígio (…)” (fl. 3100); (e) não se pretende o reexame de provas, mas apenas “que o Supremo Tribunal Federal esclareça se bastam essas três reclamações genéricas formuladas por dois índios para a expansão da Aldeia Limão Verde para caracterizar o ‘renitente esbulho’ do qual se falou no julgamento do caso Raposa Serra do Sol” (fl. 3101). Em memoriais, alega a parte agravante que (a) para que se caracterize o “renitente esbulho”, necessário se faz que haja a espoliação persistente, que reaja às investidas da tribo desapossada; (b) sem que essa insistente contraposição se estenda até a data da promulgação da Constituição Federal, não há ofensa ao direito dos índios; (c) a ocorrência de “renitente esbulho” só foi reconhecida pela Relatora, visto que o Revisor e o Vogal com ela não concordaram; (d) a perícia oficial, em momento algum, constata a existência de “renitente esbulho”, mas apenas de um esbulho, ocorrido em 1953, sem fazer referência a qualquer revide indígena; (e) assim, ainda que os índios tenham sido impedidos de utilizar as áreas litigiosas após 1953, jamais reclamaram ou protestaram contra a situação. Em parecer, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo desprovimento do agravo regimental. É o relatório. VOTO: 1. A controvérsia foi relatada pela decisão agravada nos seguintes termos: 1. Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário interposto em ação declaratória. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu, em suma, que (a) “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível direito de postular sua restituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação” (fl. 2824); (b) “a perícia encontrou elementos materiais e imateriais que caracterizam a área como de ocupação Terena, desde período anterior ao requerimento/titulação dessas terras por particulares” (fl. 2830 – verso); (c) inaplicável a Súmula 650/STF ao caso, visto que “não consta que a área objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena, ou seja, não consta tenham os indígenas deixado de ocupá-la algum dia, por vontade própria e em passado remoto, ali retornando após o decurso de tempo suficiente para justificar o título de domínio defendido pelo autor nestes autos” (fl. 2831); (d) “restando comprovado, nos autos, o renitente esbulho praticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal” (fl. 2832). No recurso extraordinário, a parte recorrente aponta, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, violação ao art. 231 da CF/88, pois, (a) segundo a firme jurisprudência do STF, para que seja considerada tradicional, a posse indígena deve ser verificada na data em que promulgada a Carta Magna; (b) não houve esbulho renitente por parte do recorrente, visto que a convivência com os índios Terena foi pacífica desde 1950 até 1996, quando iniciado o processo de demarcação da Aldeia Limão Verde; (c) o Tribunal de origem concluiu pela existência de “eventual prática de esbulho” apenas com base em três reclamações genéricas elaboradas pelos índios Terena em 1982, 1984 e 1989, nenhuma das quais se referia diretamente à Fazenda Santa Bárbara. Em contrarrazões, os recorridos postulam, preliminarmente, o não conhecimento do recurso, em razão da (a) ausência de prequestionamento; (b) fundamentação deficiente; (c) ofensa constitucional reflexa; (d) não demonstração da repercussão geral da matéria; (e) necessidade de reexame probatório. No mérito, pedem o desprovimento do recurso. A Procuradoria-Geral da República opinou pelo desprovimento do agravo, ao entendimento de que o provimento do recurso extraordinário demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 279/STF. 2. A decisão agravada enfatizou a presença do óbice da Súmula 279/STF a impedir o conhecimento do recurso extraordinário. Todavia, as razões de agravo e, sobretudo, os aprofundados votos proferidos no julgamento, nesta Turma, em 16/9/2014, do RMS 29.087, em que ficou designado o Ministro Gilmar Mendes para redigir o acórdão, conduzem a uma conclusão diferente quanto a esse ponto. Realmente, sem necessidade de invocação de outros fatos que não os expressamente indicados no acórdão recorrido, é possível formular um juízo seguro a respeito do tema constitucional posto no recurso extraordinário. Assim, superado esse óbice e considerada a relevância da matéria, trago a questão desde logo à consideração do Colegiado. 3. Ao julgar a Pet 3.388 (Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1/7/2010), o Plenário desta Corte assentou que o art. 231, § 1º, da CF/88 estabeleceu, como marco temporal para reconhecimento à demarcação como de natureza indígena de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, a data da promulgação da Carta Constitucional, ou seja, 5 de outubro de 1988. Assim, não se incluem nesse o conceito de terras indígenas aquelas ocupadas por eles no passado e nem as que venham a ser ocupadas no futuro. Confira-se: I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada na Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. (…) Ressalvou-se, é certo, que não descaracterizaria a tradicionalidade da posse nativa eventual situação de “esbulho renitente” cometido por não índios . Veja-se: (…) Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. (…) 4. Ora, no caso, tanto o voto vencedor, quanto o voto vencido do acórdão recorrido permitem concluir que a última ocupação indígena na área objeto da presente demanda (Fazenda Santa Bárbara), deixou de existir desde, pelo menos, o ano de 1953, data em que os últimos índios teriam sido expulsos da região. Portanto, é certo que não havia ocupação indígena em outubro de 1988. Argumenta, porém, o voto vencedor, que, “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível direito de postular sua restituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação” (fls. 2824). Esse entendimento, todavia, não se mostra compatível com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, conforme já afirmado, é pacífica no sentido de que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram ocupadas pelos nativos no passado. Nesse sentido é a própria Súmula 650/STF: “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Foi também nesse sentido o recente julgado da Segunda Turma em caso análogo ao presente, acima referido, em que foi reafirmado o marco temporal fixado na Pet 3.388: DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança. (RMS 29.087, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014) Nesse aresto, a controvérsia foi decidida pelo Min. Gilmar Mendes nos seguintes termos: Após precisa análise, verifico que o relatório de identificação e delimitação da terra indígena Guyraroká, elaborado pela FUNAI, indica que a população Kaiowá residiu na terra reivindicada até o início da década de 1940 e que, “a partir dessa época, as pressões dos fazendeiros que começam a comprar as terras na região tornaram inviável a permanência de índios no local” (fl. 26). Nos termos do laudo, que deu base à edição da Portaria 3.219, objeto da presente demanda: “Os Kaiowá só deixaram a terra devido às pressões que receberam dos colonizadores que conseguiram os primeiros títulos de terras na região. A ocupação da terra pelas fazendas desarticulou a vida comunitária dos Kaiowá, mas mesmo assim muitas famílias lograram permanecer no local, trabalhando como peões para os fazendeiros. Essa estratégia de permanência na terra foi praticada até início da década de 1980, quando as últimas famílias foram obrigadas a deixar o local.” (fl. 30). Vê-se, pois, que o laudo da FUNAI indica que há mais de setenta anos não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena. O acórdão do Superior Tribunal de Justiça reitera que “a comunidade Kaiowá encontra-se na área a ser demarcada desde os anos de 1750-1760, tendo sido desapossados de suas terras nos anos 40 por pressão dos fazendeiros”, mas que alguns permaneceram na região “trabalhando nas fazendas, cultivando costumes dos seus ancestrais e mantendo laços com a terra”. Nos termos da decisão do STJ, esse fato seria suficiente para legitimar a demarcação pretendida. Se esse critério pudesse ser adotado, muito provavelmente teríamos de aceitar a demarcação de terras nas áreas onde estão situados os antigos aldeamentos indígenas em grandes cidades do Brasil, especialmente na região Norte e na Amazônia. Diferente desse entendimento, a configuração de terras “tradicionalmente ocupadas” pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe:‘os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.’. No RE 219.983, precedente dessa Súmula, o Min. Nelson Jobim destacou, em relação ao reconhecimento de terras indígenas, que: “Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicionalmente’ não é posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentido da comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, o conceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de forma tradicional.” (RE 219.983, julg. em 9.12.1998). Mesmo preceito foi seguido no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em 19 de março de 2009. Na Pet. 3.388, o Supremo Tribunal Federal estipulou uma série de fundamentos e salvaguardas institucionais relativos à demarcação de terras indígenas. Trata-se de orientações não apenas direcionados a esse caso específico, mas a todos os processos sobre mesmo tema. Importante foi a reafirmação de marcos do processo demarcatório, a começar pelo marco temporal da ocupação. O objetivo principal dessa delimitação foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre terras, entre índios e fazendeiros, muitas das quais, como sabemos, bastante violentas. Deixou-se claro, portanto, que o referencial insubstituível para o reconhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, é a data da promulgação da Constituição Federal, isto é, 5 de outubro de 1988. (…) Em complemento ao marco temporal, há o marco da tradicionalidade da ocupação. Não basta que a ocupação fundiária seja coincidente com o dia e o ano da promulgação, é preciso haver um tipo “qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios.” (voto Min. Ayres Britto, Pet. 3.388). Nota-se, com isso, que o segundo marco é complementar ao primeiro. Apenas se a terra estiver sendo ocupada por índios na data da promulgação da Constituição Federal é que se verifica a segunda questão, ou seja, a efetiva relação dos índios com a terra que ocupam. Ao contrário, se os índios não estiverem ocupando as terras em 5 de outubro de 1988, não é necessário aferir-se o segundo marco. A decisão impugnada pelo presente recurso ordinário chegou a mencionar a Pet 3.388 e, inclusive, transcreveu trechos relativos à definição dos marcos temporal e tradicional, nela delimitados. Realizou, contudo, equivocada interpretação da jurisprudência desta Casa. Como visto, há mais de setenta anos não existe comunidade indígena na região reivindicada. Isto é, em 5 de outubro de 1988, marco objetivo insubstituível para o reconhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, essas terras não eram habitadas por comunidade indígena há quase meio século! O marco temporal relaciona-se com a existência da comunidade e a efetiva e formal ocupação fundiária. Caso contrário, em nada adiantaria o estabelecimento de tais limites, que não serviriam para evitar a ocorrência de conflitos fundiários. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, repita-se, não compreende a palavra “tradicionalmente” como posse imemorial. Esse entendimento, como se vê, infirma a orientação da corrente vencedora do acórdão recorrido, que, ante o mero fato de os índios Terena terem ocupado a Fazenda Santa Bárbara no passado, considerou legítima a demarcação daquela área como terra indígena, não obstante a inexistência de efetiva ocupação em 1988. 5. Restaria, como fundamento de legitimação de ato demarcatório, averiguar a existência do que, no julgamento da Pet 3.388, se denominou de “esbulho renitente”. O voto vencedor do julgado atacado considerou presente a ocorrência desse esbulho nos seguintes termos: Na hipótese, restou incontroverso que, à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, os índios da etnia Terena não estavam na posse da área reivindicada, posteriormente demarcada e homologada pelo Decreto Presidencial. Importa saber, portanto, se dela foram os índios desalojados em virtude de renitente esbulho praticado por não índios. Acerca desta questão, o laudo pericial explica exatamente como os silvícolas foram desalojados do local onde viviam. (fl.1100): “Como indicamos nos itens 2.1 e 2.2, e depois nos itens 4.1 e 4.2 deste laudo, o processo de colonização da região da bacia do Aquidauana se intensifica especialmente depois do término da Guerra do Paraguai. Na região em questão, existiam diversos aldeamentos indígenas, como Ipegue na planície e o Piranhinha nos morros, como são registrados nos documentos já citados, pelo menos desde 1865-66. A partir de 1892 inicia-se um processo de colonização conduzido por um grupo de coronéis (apesar de que antes da aquisição de terras por esse grupo, já existiam posseiros na região, como é o caso de João Dias Cordeiro) por meio da constituição vila de Aquidauana e de propriedades rurais e urbanas. Pelos documentos localizados, a partir de 1895 em diante inicia-se um processo de titulação em terras localizadas entre o Córrego João Dias, o Morro do Amparo e o Aquidauana que se choca com as terras de ocupação indígena em diversos pontos. Isso caracteriza um choque entre o poder local e a economia agropecuária e a sociedade Terena. Esse choque de interesses sobre as terras e os recursos ambientais está registrado nos diversos documentos analisados e citados no laudo, e resultará na titulação das terras para o município em 1928 e depois na criação da Colônia XV de Agosto em 1959, incidentes na área depois identificada como indígena. Assim, consolida-se o processo ocupação nos territórios em questão. Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra.” (grifei). Além disso, o MM. Juiz sentenciante constatou na inspeção judicial que, a partir do ano de 1953, os índios, não por vontade própria, ficaram impedidos de utilizar as terras da área litigiosa. Confira-se o seguinte trecho da r. sentença: “Por ocasião da inspeção que realizei na área em litígio constatei que a Fazenda Santa Bárbara tem divisa bem definida com as terras indígenas. Além da divisa natural, representada pelo paredão da Serra de Amambaí, tornando difícil o acesso entre as glebas, existem cercas em todo o perímetro da fazenda. Essas cercas remontam à época que antecedeu a passagem do agrimensor Camilo Boni (1953).” – (fls. 2417) Diante disso, restando comprovado, nos autos, o renitente esbulho praticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal. Ademais, não vislumbro como afastar as conclusões do laudo oficial, considerando que nem mesmo os argumentos que foram deduzidos pelo assistente técnico do autor conseguiram desconstituir a conclusão a que chegou o perito judicial, de reconhecida idoneidade e competência. (fl. 2831/2832) O que se tem nessa argumentação, bem se percebe, é a constatação de que, no passado, as terras questionadas foram efetivamente ocupadas pelos índios, fato que é indiscutível. Todavia, renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públicos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propósito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. Nesse aspecto, cumpre registrar o que atestou o voto vencido do aresto impugnado: Desde a desocupação na década de 1950, o grupo tribal Terenas não reivindica direta ou indiretamente a área. A tolerância que se sucedeu ao esbulho praticado pelos membros da sociedade nacional comprometeu o liame entre a fazenda e os usos, costumes, tradições da comunidade e originou uma situação fática que veio a ser legitimada pela Constituição Federal de 1988 (fl. 2914) Dessa forma, sendo incontroverso que as últimas ocupações indígenas na Fazenda Santa Bárbara ocorreram em 1953 e não se constatando, nas décadas seguintes, situação de disputa possessória, fática ou judicializada, ou de outra especie de inconformismo que pudesse caracterizar a presença de não índios como efetivo “esbulho renitente”, a conclusão que se impõe é a de que o indispensável requisito do marco temporal da ocupação indígena, fixado por esta Corte no julgamento da Pet 3.388 não foi cumprido no presente caso. 6. Diante do exposto, dou provimento ao agravo regimental e conheço do agravo para dar provimento ao recurso extraordinário, julgando procedente o pedido. Ficam invertidos os ônus de sucumbência. É o voto. *decisão publicada no DJe de 12.2.2015. Secretaria de Documentação – SDO Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD
——-
INFORMATIVO Nº 771
TÍTULO Renitente esbulho e terra tradicionalmente ocupada por índios
PROCESSO HC – 106566
ARTIGO O renitente esbulho se caracteriza pelo efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data da promulgação da Constituição de 1988, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada. Com base nessa orientação e por reputar não configurado o referido esbulho, a 2ª Turma proveu recurso extraordinário para desconsiderar a natureza indígena de área não ocupada por índios em 5.10.1988, onde localizada determinada fazenda. No caso, o acórdão recorrido teria reconhecido que a última ocupação indígena na área objeto da presente demanda deixara de existir desde o ano de 1953, data em que os últimos índios teriam sido expulsos da região. Entretanto, reputara que, ainda que os índios tivessem perdido a posse por longos anos, teriam indiscutível direito de postular sua restituição, desde que ela decorresse de tradicional, antiga e imemorial ocupação. A Turma afirmou que esse entendimento, todavia, não se mostraria compatível com a pacífica jurisprudência do STF, segundo a qual o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrangeria aquelas que fossem ocupadas pelos nativos no passado, mas apenas aquelas ocupadas em 5.10.1988. Nesse sentido seria o Enunciado 650 da Súmula do STF (“Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”). Salientou que o renitente esbulho não poderia ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Também não poderia servir como comprovação de esbulho renitente a sustentação desenvolvida no acórdão recorrido de que os índios teriam pleiteado junto a órgãos públicos, desde o começo do século XX, a demarcação das terras de determinada região, nas quais se incluiria a referida fazenda. Sublinhou que manifestações esparsas poderiam representar anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área, mas não a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. ARE 803462 AgR/MS, rel. Min. Teori Zavascki, 9.12.2014. (ARE-803462)
——
INFORMATIVO Nº 760
TÍTULO Crime contra o patrimônio da União, coisa julgada formal e empate na votação
PROCESSO Inq – 3670
ARTIGO Ante o empate na votação, a 2ª Turma recebeu, em parte, denúncia oferecida contra Deputado Federal pela suposta prática do crime de dano qualificado (CP: “Art. 163 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: … Parágrafo único – Se o crime é cometido: … III – contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista; … Pena – detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.”). Na espécie, após ordem de desocupação emitida pelo STF em março de 2009, o denunciado teria destruído e deteriorado patrimônio da União, consistente em acessões em duas fazendas, localizadas na Reserva “Raposa Serra do Sol”, em Roraima, das quais fora desapossado em razão da demarcação de terras indígenas. Preliminarmente, a defesa alegava que a denúncia seria inepta por não conter descrição do momento da prática do crime, nem especificar quais acessões teriam sido destruídas. No mérito, sustentava que a conduta praticada seria atípica, pois as acessões seriam de sua propriedade. Os Ministros Gilmar Mendes (relator) e Teori Zavascki acolhiam parcialmente a preliminar de inépcia da denúncia ao fundamento de que não haveria identificação suficiente para que fosse possível precisar o objeto do crime supostamente perpetrado contra as acessões existentes em uma das fazendas, haja vista a ausência de descrição em laudo de exame do local. Por outro lado, os Ministros Cármen Lúcia e Celso de Mello rejeitavam a preliminar de inépcia da denúncia. A Turma consignou que, nesse caso, em razão da falta de regra regimental, o empate deveria favorecer o denunciado. Ressaltou que a rejeição por inépcia faria apenas coisa julgada formal. Assim, restaria à acusação a possibilidade de apresentar nova exordial sem o defeito apontado nesse julgamento. No tocante à outra fazenda, a Turma, por maioria, recebeu a denúncia, porquanto os supostos danos praticados contra as acessões estariam descritos em laudo de exame do local. Asseverou, ademais, que a arguição de que o denunciado poderia destruir aquilo que não pudesse ser retirado da terra ocupada por considerá-la de sua titularidade não seria suficiente para que se pudesse afastar o que alegado pelo Ministério Público. Vencido, no ponto, o relator. Aduzia que o denunciado teria incorrido em erro de tipo (CP, art. 20) quanto ao caráter alheio da coisa, porque estaria convicto de que fora injustamente desapossado da terra pela União e de que o patrimônio danificado seria seu. Inq 3670/RR, rel. Min. Gilmar Mendes, 23.9.2014. (Inq-3670)
Compartilhe em suas redes sociais:
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no X(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela)
- Clique para enviar um link por e-mail para um amigo(abre em nova janela)
Deixe um comentário