No dia 4 de janeiro de 1985, há exatos 30 anos, uma tropa de policiais militares fortemente armados sob o comando do capitão Cordovil cercou a casa de um colono na localidade de Vila Nova, na região do Piriá, nordeste do Pará. Quintino da Silva Lira, líder do movimento de resistência dos posseiros da Gleba Cidapar, foi morto pelos policiais com dois tiros de fuzil ao tentar escapar do cerco. Após o fuzilamento, seu corpo foi levado pelos policiais para a cidade de Capitão Poço, violado e exposto em uma ruidosa farra às custas de comerciantes da região.
Na época, o governador do Estado do Pará era Jader Barbalho, e partiu dele a ordem para que tropas da Polícia Militar estadual ocupassem a área e encerrassem definitivamente o conflito entre os posseiros e os proprietários da área que ficou conhecida como Gleba Cidapar (entre eles o próprio Governador) no município de Viseu.
Quintino Lira, o Quintino Gatiheiro, dizia que não era pistoleiro. Segundo ele, pistoleiro é quem trabalha a soldo contratado por fazendeiro para defender o patrimônio do patrão. Já o Gatilheiro é quem trabalha em defesa do próprio patrimônio e do patrimônio dos irmãos.
– Foi morto no sítio do Senhor Florismar Monteiro, um dos milhares de posseiros da Cidapar.
No final dos anos 1970, a Companhia de Desenvolvimento Agropecuário, Industria e Mineral do Pará (Cidapar), apoiada pelo governo estadual e de acordo com o projeto de desenvolvimento da Amazônia do governo federal, começou a expulsar famílias de uma área de 380 mil hectares, incluindo parte do que viria a ser a Terra Indígena Alto Rio Guamá, onde viviam cerca de 10 mil colonos. A maioria dos posseiros ocupou a área no início do século XX, quando levas de nordestinos fugindo da seca migraram para a região, incentivados pela abertura de estradas e a pela divulgação dos planos de desenvolvimento do governo.
O capitão James Vita Lopes comandava a chamada “guarda de segurança”, uma milícia de 102 pistoleiros a soldo da Cidapar. Quando a milícia executou o agricultor Sebastião Mearim, no Alegre, os homens do povoado se reuniram para discutir a defesa. Mas não tinham experiência em combater inimigo tão forte, que tinha apoio político.
“Eu sou Quintino, matei um cara que tomou minha terra. Este revólver era dele, este chapéu era dele. Mas defunto não precisa dessas coisas”, lembra Benedito Tavares, o Bené Duzentos, no Igarapé do Pau, reproduzindo as palavras de Quintino. “Eu nunca tive coragem”, disse Bené ao jornalista Leonencio Nossa, do jornal O Estado de São Paulo. “Ninguém tinha disposição de morrer pelo povo”, emendou. “Com a chegada do Quintino, fomos para a guerra.” O Quintino Gatilheiro comandou ações de resistência que mataram vários pistoleiros e dois gerentes da Cidapar.
Para a pesquisadora Violeta Refkalefsky, autora do livro Estado, bandidos e heróis – Utopia e luta na Amazônia, “Quintino encarnou o que Eric Hobsbawm entende como o bandido social clássico, no estilo de Robin Hood – um bandido, um fora-da-lei que se volta para a causa dos pobres, fracos e oprimidos”.
Em maio de 1986, pouco mais de um ano depois do assassinato de Quintino na luta pela terra da Gleba Cidapar, o próprio Jader Barbalho, então ministro da reforma agrária do presidente José Sarney, fez publicar o Decreto Nº 92.623 (veja aqui) criando o Plano Regional de Reforma Agrária (PRRA) do Pará. O decreto deu início à desapropriação da toda a área, incluindo as fazendas da família do próprio ministro. Jader criou quatro grandes assentamentos da reforma agrária, formando e consolidando a ocupação dos posseiros em diversas vilas agrícolas na área.
O martírio de Quintino Gatilheiro resultou na vitória dos posseiros contra o “latifúndio”. Mas não para todos.
Mas em 1993, um dos assentamos criados por Barbalho foi anulado por coincidir com a área demarcada pela Funai como Terra Indígena Alto Rio Guamá homologada naquele ano.
Desde a demarcação da Terra Indígena Alto Rio Guamá, agricultores que lutaram ao lado de Quintino contra os fazendeiros da Gleba Cidapar lutam agora contra outro inimigo poderoso: o indigenismo da Funai e do Ministério Público Federal.
Em fevereiro de 2008 o coordenador regional da Funai em Belém, Juscelino Bessa, responsável pela região da Cidapar, e outros dois técnicos da fundação tiveram que ser resgatados de helicóptero da área. Colonos fizeram um grande protesto queimando pontes e fechando estradas de acesso depois que um grupo de índios tembé resolveu expulsa-los da terra assim como os pistoleiros da Cidpar haviam feito anos antes. Novamente o governo enviou guarnições da polícia militar do estado para garantir, agora junto com os índios, a retirada dos colonos. Mas a operação foi cancelada depois da reação dramática dos colonos.
Há pouco mais de um mês um grupo de índios tentou expulsar novamente os agricultores por iniciativa própria (Veja aqui matéria do G1 sobre o caso). Cinco colonos, incluindo um criança de cinco anos de idade, foram baleados pelos índios.
Uma semana depois o Ministério Público Federal do Pará divulgou nota na qual afirma que o conflito é objeto de duas ações do MPF na Justiça Federal que ordenam a retirada de todos os invasores, incluindo os de boa-fé, da área demarcada pela Funai. (veja aqui).
As ações do Ministério Público resultaram em decisões judicias que ordenam, em prazo já esgotado, a retirada forçada dos colonos da área coincidente entre a Gleba Cidapar e a área demarcada pela Funai. Mais cedo, ou mais tarde, todos serão expulsos da terra como ocorreu em Roraima, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (veja aqui), no Pará, na Terra Indígena Apyterewa (veja aqui), no Mato Grosso, da Terra Indígena Marãiwatsédé e no Maranhão (veja aqui), na Terra Indígena Awá-Guajá (veja aqui). Trinta anos depois da morte de Quintino Gatilheiro agricultores que resistiram ao latifúndio serão agora expulsos pelo indigenismo.
O caso dos colonos da Cidapar diante do indigenismo é a expressão do atual conflito indígena. Ano passado, o então Secretário-Geral da Presidência da República, Ministro Gilberto Carvalho, em uma reunião com pequenos agricultores e índios descreveu bem o dilema. “A velha figura apenas do latifúndio contra o pequeno proprietário evoluiu para situações muito mais difíceis e complexas. Você não está lutando contra um latifundiário ou um grileiro. Você tem um conflito do indígena contra o pequeno agricultor que tem também ali seu cemitério e toda a sua afetividade presente”, disse Gilberto Carvalho. Veja e ouça com atenção:
Assim adentramos 2015. Que a morte de Quintino da Silva Lira jamais seja esquecida. Veja AQUI a entrevista do posseiro Florismar Monteiro, ultima pessoa a ver Quintino da Silva Lira vivo e testemunha do seu assassinato, feita pelo jornalista Leonencio Nossa, do jornal O Estado de São Paulo.
FONTE: www.questãoindigena.org (NÃO MAIS DISPONÍVEL EM JANEIRO 2022)
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