“O Estado é laico, mas feliz é a nação cujo Deus é o senhor…” declarou a presidenta Dilma ao participar da inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo. Dali do sudeste do país a determinação bíblica alcançou o noroeste da Amazônia. E ao invés de utilizar algum espaço público como uma escola ou a própria Universidade Federal do Amazonas, no município vizinho de Benjamin Constant, para apresentar um novo programa que impacta diretamente a vida das comunidades indígenas, um espaço de culto evangélico — religião cuja ação proselitista de missionários é uma das principais causas de conflito com comunidades indígenas na região — tornou-se um espaço político desse Estado que é laico, “mas”…
Em Atalaia do Norte, o governo federal realizou no sábado 30 uma “consulta prévia” à população indígena do Vale do Javari, do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) local, dentro de uma Igreja da Assembléia de Deus, sobre um tema de direto interesse a eles: a criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI). É o último ato de um processo que levou alguns dias, e que tive a oportunidade de presenciar e aqui faço um relato descritivo do que presenciei. É provável que esse processo esteja acontecendo, de forma semelhante, por todo o Brasil. Ao mesmo, é o que acusam cartas e protestos do movimento indígena.
Nessa sábado 30, a consulta do governo poderia ter versado sobre a prospecção e exploração de petróleo que é pretendida pela Petrobrás no Vale do Javari, ou poderia ser a mineração ou extração de madeiras, ou sobre a construcão de usinas hidrelétricas, como as consultas que o governo tenta fazer junto aos Munduruku, no rio Tapajós, no Pará. Mas foi um debate sobre o que pode salvar a vida de uma população que chega a ter aldeias com elevadíssima contaminação por hepatite, por exemplo. Na mesa estavam representantes do Ministério da Saúde, no quórum indígenas e funcionárias não indígenas temporárias do ministério mobilizadas em defender seus empregos. Um cartaz “Ó vinde, adoremos” separa os que regem o culto do público nos bancos da Igreja.
O processo aconteceu em português, com alguns depoimentos de algumas lideranças eventualmente traduzido por jovens. Ainda que poucos indígenas sentiam-se confortáveis expressando-se em português e quase todos disseram nos momentos em que tivessem chance de se expressar que não estavam entendendo nada. O que deveriam entender?
Saúde indígena
A saúde indígena no Brasil é caótica. No Vale do Javari a situação é uma das piores, com aldeias assoladas pelas hepatites virais, ainda mais letais quando associadas aos altos índices de contaminação por malária, mortalidade infantil bem acima da média nacional e estruturas físicas deterioradas ou inexistentes nas aldeias, que deveriam dar atenção básica e diferenciada à saúde dos povos da região. Após mudanças recentes, foram contratados médicos, porém as visitas mais seguidas nas aldeias não implicou na uma inversão no quadro degradante dos indicadores de saúde da região em razão da falta de medicamentos, de estruturas e equipamentos para atendimentos in loco na comunidade e do despreparo para uma relação intercultural com esses povos, principalmente nos diálogos no sentido da prevenção de doenças. A justiça deveria definir, nas próximas semanas, uma determinação para o ministério realizar novos concursos. Para escapar dos concursos e da lei de licitação (a famosa Lei 8.666), o ministério tentou uma medida ousada e rápida: criar um instituto privado (chamado pelos técnicos do governo de “paraestatal”), o Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), uma proposta articulada pela Secretaria Nacional de Saúde Indígena (Sesai) com técnicos do Ministério do Planejamento para salvar a saúde indígena da UTI.
Em outras palavras, assim explica o ministério da Saúde: “A proposta de um novo modelo de gestão da saúde indígena pretende dar mais agilidade aos processos administrativos e às contratações de profissionais que atuam junto aos povos indígenas.”
Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o movimento indígena, trata-se de uma privatização da saúde indígena. A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, atacou, em nota que pode ser lida aqui, a criação do INSI. Entre as diversas “inverdades”, ela diz que os concursos não alcançariam os agentes indígenas de saúde (indígenas que são contratados para prestar auxilio de saúde, essa era uma reivindicação do movimento indígena), e que estes deveriam ser realizados com a preocupação de “assegurar a ampla presença indígena nesses cargos, bem como a manutenção das equipes que se encontravam em área há bastante tempo.”
Para o governo, problema é “concurso” e “licitação”
Na “consulta” dentro da Igreja em Atalaia, as palavras “concurso” e “licitação” eram as mais repetidas, sempre em tom de crítica a esses dois mecanismos legais de combate a corrupção. Os representantes do ministério da saúde mostravam-se sempre contrários a realização de concurso público e apontando a lei de licitações como o grande problema pela falta de medicamentos. Eram aplaudidos pelas funcionárias não indígenas presentes, de forma a criar um clima de enfrentamento a quem tivesse uma opinião contrária.
O secretário executivo do Fórum dos Presidentes de Condisi, Marcos Antonio da Silva Pádua, representava a Sesai. Ao seu lado estava Heródoto Jean de Sales, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari– DSEI/Sesai e Jorge Marubo, funcionário da Sesai e presidente do Condisi/Vale do Javari, e que nos primeiros dias do encontro havia mostrado preocupações com as mudanças propostas, com tanta pressa, mas no sábado estava articulado em ajudar o governo a aprovar a medida.
Pádua, nas suas falas, mostrou-se firme com a proposta e duro com as críticas. Com relação à subprocuradora-geral, ele disse: “É lamentável essa senhora querer empurrar goela abaixo um concurso público”; “é pura enganação da sub-procuradora Deborah Duprat. Tenho conhecimento das decisões dessa senhora. Não se enganem, pois que ela quer empurrar um concurso público a toda a força para as populações indígenas. É lamentável.”
Em um momento ele parou de falar, pegou o telefone celular, passou a checar mensagens e disse que tinha uma novidade para contar: 15 distritos de saúde indígena (os DSEI) teriam sido aprovado o novo instituto, e ele prometia, em tom de vitória, que “os Kayapó vão aprovar amanhã”.
Era preciso acelerar os tramites, pois para Pádua no dia “7 de outubro o juiz pode canetar uma decisão”: “O juiz disse que ou é instituto ou é concurso publico. Infelizmente no nosso país o que o judiciário decide vamos ter que seguir”
O representante da Sesai atacou o Cimi e respondeu à crítica de que se trata de uma “privatização”: “o braço executor será instituto. Não será privatização, pois o dinheiro é todo publico”. Segundo ele o instituto iria resolver todos os “entraves”. Não foi mencionado que em algumas regiões os indígenas haviam rejeitado a proposta, como no sul do país (no caso, inclusive denunciando a pressão da Sesai, leia aqui) .
Em alguns momentos, os representantes da Sesai foram interrompidos pelo funcionário local da Funai, Bruno Pereira, que dizia que os indígenas não estavam entendendo perfeitamente a medida e que precisariam de mais tempo para poderem deliberar sobre a questão. Frisou que a votação não estava na pauta da reunião, mas sim uma apresentação sobre a proposta do novo instituto, e que os indígenas que vieram de suas aldeias não sabiam que ocorreria uma votação para “legitimar” uma decisão tomada em Brasília.
Pádua respondeu duramente que “se não aprovar vai retroagir”, sob aplausos das funcionárias não indígenas presentes, de forma a criar um clima de disputa de torcida. “O que esta sendo feito aqui é uma consulta. Tem representantes de todos os povos indígenas e de mais de 40 aldeias. É rápido? Eu concordo. Mas está fazendo aqui a consulta”, disse o coordenador do DSEI/Vale do Javari, Heródoto Jean. Ressaltou ainda que isso era uma democracia e novamente foi aplaudido pelos funcionários não indígenas presentes.
Jorge Marubo, ao lado de Pádua, detalhou a proposta explicando que o instituto seria melhor para os índios do Javari e que se “fosse obedecer as leis de licitação ia ter as mesmas dificuldades”: “Hoje os índios questionam a alimentação. Por que? Porque o fornecedor não entrega. Dai quem é cobrado? O gestor”, justificou.
Pereira, da Funai, interrompeu novamente dizendo que não havia tempo para discutir a proposta, que o governo estava se portando como um “trator avassalador” e que eles não poderiam forçar uma eleição que não estava em pauta.
Pádua respondeu para que “fizesse um documento” como as organizações indígenas estavam. Por “documento” ele se referi à serie de manifestações contrárias que tem circulada pelo movimento indígena.
Por exemplo, a Coiab se manifestou contrária (leia aqui), acusando a “iniciativa governamental que nada tem haver com todo esforço do movimento indígena dos últimos anos em discutir um sub sistema distrital de atenção a saúde indígena com autonomia administrativa e financeira”. Também foram contra a Arpinsul (leia aqui) que apoiou a Apib (leia aqui), a Apoinme (leia aqui), assim como os indígenas da região do rio Purus (leia aqui), os indígenas de Roraima (ver manifesto do CIR aqui), da Bahia (ver manifesto do Mupoiba contra a “privatização da saúde indígena” aqui) e os povos indígenas de Rondônia e Mato Grosso (leia aqui)
Votar ou não votar não é uma questão
Jorge Marubo e Pádua aceitaram o repúdio que a proposta tem sofrido pelo movimento indígena e tentaram apressar a votação para que os presentes aceitassem a medida frisando: “O instituto vai funcionar melhor do que com concurso público”, ao que foi aplaudido pelas funcionárias não índias presente, novamente, como uma torcida.
Era evidente a pressa em votar e em simplificar as informações para que os indígenas reclamassem, mas votassem e aprovassem. A chamada “pressão” denunciada pelo movimento indígena.
Paulo Barbosa da Silva, presidente da principal organização indígena do Vale do Javari, a Univaja, era contra a votação: “Surgiu agora essa proposta e não temos tempo para discutir. Por isso, o posicionamento do movimento indígena é contra ela. Queremos que seja levado para ser discutido nas aldeias. Temos que respeitar nossos caciques e aqueles que moram nas aldeias. O questionamento é isso. Precisamos de dois meses para sermos consultados. Não temos nem noção de como vai funcionar ou do que ele está falando”, disse.
Paulo, que vive na aldeia Maronal, relata que faleceu esse ano de 2014 o pajé Armando Marubo, da aldeia Paraná, por tuberculose, segundo ele por falta de medicamento, e que em razão dessa perda espiritual seu povo estaria muito triste.
“Esse é um jogo politico que vai complicar ainda mais o atendimento de saúde dos índios de todo o Brasil”, criticou o presidente da Univaja. “Não considero isso uma consulta correta. As lideranças aqui não entendem bem o português. Isso surgiu de uma hora para outra. Viemos discutir um plano distrital e nos colocaram para aprovar um instituto sobre o qual não temos conhecimento. Eu queria que essa discussão fosse levada para as aldeias depois de todo mundo estar ciente disso.” Seu medo, além de tudo, é que o governo utilize esse tipo de consulta, por exemplo, para iniciar a exploração de petróleo, feita de forma atropelada, manipulada, sem tradução, e ainda por cima dentro de uma igreja.
Faltou explicar
Jorge Marubo admitiu que “faltou explicar, faltou comunicar”, mas que “temos que ter encaminhamento”. “É rápido e ruim, mas é a forma como estamos participando da construção. No mundo do branco isso é normal.”
O cacique Waki, liderança do povo Matsés, pegou o microfone e falou na sua língua. Como ele é um dos conselheiros do DSEI com direito a voto, ele disse que não iria votar sobre a criação do instituto, nem contra, nem a favor, mas não iria votar pois não havia compreendido do que se tratava.
Algumas lideranças disseram que queriam votar logo e voltar para suas aldeias, e eram aplaudidas pelas funcionarias não indígenas. Um Matis disse: “Eu não sou a favor do concurso público. Eu apoio o instituto”. Aplausos das funcionários não indígenas que queriam manter seu emprego.
Chico Preto, liderança Matsés da aldeia Lago Grande, falou em sua língua, expressou revolta e disse que ele está doente há três dias, sem medicamentos. Disse que apesar disso não iria votar.
Mesmo em meio a confusão sobre para que serviria a votação, ou não, Pádua da Sesai junto de Jorge Marubo separou os presentes na Igreja e colocou em votação a criação do INSI. Pelos conselheiros. As lideranças que não haviam entendido o que era o instituto também aparentemente não entenderam nem o que estava sendo votado.
Reuniram-se todos nas cadeiras de plásticos a frente da faixa “Ó vinde, Adoremos”, provavelmente uma referência a alguma mensagem da religião evangélica da Igreja, e não com o Instituto Nacional de Saúde Indígena.
Os representantes públicos levantam-se na mesa como em uma benção. Dividem o grupo entre funcionários e índios lado a lado. Quem é a favor? Todas as funcionárias não indígenas levantam o braço, ao que algumas lideranças indígenas olham e repetem o gesto, inclusive o próprio Chico Preto que dois minutos antes tinha repudiado a iniciativa e dito que não votaria. Quem é contra? Ninguém. Quem se abstem? Pereira, da Funai. O conselheiro e liderança Waki fica mudo e é esquecido da conta.
Pádua, da Sesai, sorri aliviado, pega o celular e sai da mesa para mandar mensagem de vitória para seus colegas que estão distantes, em outras votações. Perguntei a ele sobre se uma Igreja evangélica é o local adequado para se realizar uma consulta prévia a uma população indígena sobre uma mudança na política pública de saúde organizada pelo governo federal, e ele me respondeu que não havia na cidade outro local adequado para receber 70 pessoas (provável que houvesse menos de 40 ali) e que isso não interferia em nada. Disse também que alguns resumos da proposta de criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena haviam sido “traduzidos” e que portanto as lideranças indígenas ali estavam cientes de tudo, mesmo que dissessem que não estavam.
Por: Felipe Milanez
Fonte: Carta Capital
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