O desmatamento, especialmente nos Andes da Bolívia e do Peru, é o que mais agrava as inundações na bacia do rio Madeira, que este ano adquiriram status de catástrofe na Amazônia boliviana e em seu desaguadouro brasileiro. Essa é a análise de Marc Dourojeanni, professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, em contraste com ambientalistas e autoridades bolivianas, que insistem em culpar as hidrelétricas brasileiras de Jirau e Santo Antônio pelas inundações sem precedentes que castigaram o departamento de Beni.
“Não tem lógica”, explicou Dourojeanni à IPS. Seria necessário revogar a lei da gravidade e a topografia para ignorar que, nesse caso, os brasileiros sofrem mais os efeitos do que ocorre na Bolívia do que o contrário, sem descartar os muitos pecados das represas. O rio Madeira é o maior afluente do Amazonas e recebe águas de quatro grandes rios, cada um com mais de mil quilômetros de extensão e bacias que formam uma área de drenagem de 903.500 quilômetros quadrados, a superfície da Venezuela e quase o dobro da da Espanha.
Com 80% dessa área, a Bolívia capta, em dois terços de seu território, águas que escorrem até o Madeira por mais de 250 rios, em forma de funil, que deságuam no Brasil. Do Peru provém o rio Madre de Dios. A essa vastidão se acrescenta o acentuado declive. Três de seus grandes afluentes – Beni, Mamoré e Madre de Dios – nascem nos Andes, entre 5.500 e 2.800 metros de altitude, e caem abaixo dos 500 metros nas planícies amazônicas bolivianas.
Essas ladeiras “há mil anos estavam cobertas por florestas e agora estão peladas”, em grande parte pelos incêndios para abrir espaço para uma agricultura de subsistência, afirmou Dourojeanni, agrônomo e engenheiro florestal, responsável pela Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento na década de 1990. A consequência são as torrentes de água que chegam e param nas planícies bolivianas, alagando-as, e seguem para o Brasil. Boa parte dessas planícies são inundáveis até mesmo quando ocorrem chuvas normais.
Este ano, morreram na Bolívia 60 pessoas e 68 mil famílias ficaram desabrigadas pelas cheias, em uma repetição acrescida de tragédias semelhantes provocadas pelos fenômenos El Niño e La Niña, antes de serem construídas as represas brasileiras. O desmatamento em ladeiras andinas entre os 3.800 metros de altitude, onde começam as florestas, e os 500 metros é enorme na Bolívia e no Peru, mas não aparece nas estatísticas oficiais, denunciou Dourojeanni, também criador da fundação peruana Pró-Natureza.
Sem barreiras para o declive, arma-se um “tsunami” em terra firme, que no primeiro trimestre atingiu seis departamentos bolivianos e o fronteiriço Estado brasileiro de Rondônia. As casas de mais de cinco mil famílias brasileiras foram inundadas pela cheia incomum do Madeira, especialmente em Porto Velho, capital de Rondônia, onde estão as duas hidrelétricas. A estrada BR-364 ficou intransitável desde fevereiro, isolou o vizinho Estado do Acre por terra e afetou o abastecimento de alimentos e combustíveis. Doenças como leptospirose e cólera também fizeram vítimas.
A busca por culpados, também no Brasil, se voltou para as represas. A justiça federal ordenou que as empresas proprietárias das centrais apoiassem as vítimas com alojamento adequados, entre outras medidas. Além disso, as empresas terão que fazer novos estudos de impacto das represas, supostamente responsáveis por agravar a cheia do rio. As duas centrais ampliaram sua capacidade a respeito do projeto inicial sem fazer uma avaliação.
Empresas e autoridades tentam convencer a irada população local de que a catástrofe não se agravou pelas duas represas recém-enchidas. Chuvas tão intensas “só ocorrem a cada 500 anos” e, com uma bacia tão extensa acumulando água, é natural que as planícies sejam inundadas, como ocorreu também em quase toda a Bolívia, pontuou Victor Paranhos, presidente do consórcio Energia Sustentável do Brasil, que opera Jirau, a central mais próxima da fronteira boliviana.
Desde 1967, o fluxo do rio Madeira é monitorado e o nível máximo registrado em Porto Velho foi de 17,52 metros em 1997, destacou Francisco de Assis Barbosa, responsável estadual de hidrologia do Serviço Geológico do Brasil. No final de março esse nível atingiu 19,68 metros, em um ano “totalmente atípico”, acrescentou à IPS. A pluviosidade extrema na bacia do Madeira teve como contraponto a forte seca em outras partes do Brasil, que gerou uma crise energética e escassez de água em São Paulo.
Uma massa de ar seco e quente estacionou no centro-sul do país entre dezembro e março, bloqueando ventos que transportam umidade da Amazônia, e, assim, a precipitação se concentrou na Bolívia e no Peru. Esses eventos climáticos tendem a se repetir com maior frequência devido à mudança climática global, segundo climatologistas. O desmatamento afeta o clima e exacerba seus efeitos.
Transformar uma floresta em pastagem multiplica por 26,7 a quantidade de água que escorre para os rios e por 10,8 a erosão do solo, constatou em 1989 um estudo de Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Isso significa que metade da chuva que cai em pastagens vai direto para os rios, aumentando as cheias e a sedimentação. Essa perda diminui em proporção à presença de vegetação mais alta e de raízes profundas, segundo medições de Fearnside em terrenos com declive de 20% em Ouro Preto D’Oeste, município de Rondônia.
Cultivar a terra “é pior” do que as pastagens, porque “limpa todo o solo”, eliminando inclusive a erva que alimenta o gado e retém um pouco de água, apontou Dourojeanni. Mas a pecuária compacta o solo pelo pisotear do gado, acelerando o escorrimento, acrescentou esse biólogo de origem norte-americana e nacionalidade brasileira que pesquisa a Amazônia desde 1974.
Em sua opinião, o desmatamento “contribui pouco para as inundações bolivianas no momento, porque o grosso das florestas continua de pé”. Isso também afirma o especialista em hidrologia boliviano Jorge Molina, da Universidade Mayor de San Andrés. A Bolívia está entre os 12 países de maior desmatamento atual, revela um estudo de 15 centros de pesquisa divulgado pela revista norte-americana Science, em novembro. O país perdeu 29.867 quilômetros quadrados de florestas entre 2000 e 2012, indicam imagens obtidas via satélite e ferramentas do Google.
A pecuária é um grande fator e se expandiu principalmente em Beni, fronteiriço com Rondônia. Ali teriam morrido 290 mil bovinos entre janeiro e fevereiro, segundo a federação local de pecuaristas. A avalanche hídrica ameaça inclusive a eficiência das usinas hidrelétricas. Santo Antônio teve que interromper sua geração em fevereiro. Isso explica o interesse brasileiro em construir outras centrais bacia acima, “mais para regular o fluxo do Madeira do que pela energia”, destacou Dourojeanni.
Os planos incluem, além de um projeto fronteiriço com a Bolívia e a central Cachuela Esperanza no baixo Beni boliviano, outra hidrelétrica peruana no distante rio Inambari, afluente do Madre de Dios, detalhou Dourojeanni. Os planos de Inambari e de outras quatro hidrelétricas peruanas, cuja concessão foram ganhas por empresas brasileiras, foram suspensos em 2011 pela resistência popular à sua construção.
Por: Mario Osava
Fonte: IPS
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