Metal potencialmente tóxico e com capacidade de se acumular no organismo, o mercúrio é encontrado em rios amazônicos como resquício da atividade de mineração e, em alguns pontos, como ocorrência natural. Essa presença afeta a fauna aquática e pode atingir humanos que consomem o pescado com mercúrio.   

Iniciado em 2011, um projeto coordenado pelo Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP), utilizou ferramentas da biologia molecular para aprimorar métodos de detecção de mercúrio nos principais peixes consumidos na bacia do rio Madeira, em Rondônia.

Com apoio da FAPESP, na modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular, o projeto “Desenvolvimento de métodos analíticos para estudo metalômico do mercúrio em peixes coletados na área de influência do AHE Jirau Bacia do Rio Madeira” analisou três espécies de peixes entre as mais consumidas na região: dourada (Brachyplatystoma rousseauxii), pacu (Mylossoma sp. , Myleus sp. ) e jaraqui (Semaprochilodus sp. ).

Esse trabalho continuou o aprimoramento de técnicas trabalhadas em outro projeto, “Desenvolvimento de metodologias analíticas para avaliação de metaloproteínas de tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus)”, outro Auxílio à Pesquisa –-Regular FAPESP, realizado de 2008 a 2010, com peixes dessa espécie encontrados no Estado de São Paulo.

Desta vez, o estudo se restringiu aos peixes coletados na área de influência da usina hidrelétrica de Jirau, que represou em 2010 parte do rio Madeira em um trecho a 120 quilômetros de Porto Velho (RO). “Esse tipo de construção altera a dinâmica do rio, podendo disponibilizar espécies mercuriais que estavam inertes no leito do rio e podem ser absorvidas pela biota aquática”, explicou o químico Pedro de Magalhães Padilha, professor da Unesp e coordenador do projeto.

De acordo com Padilha, o trabalho conseguiu otimizar os métodos de especiação de metais por meio de uma área do conhecimento recente, a metalômica. União da proteômica com técnicas de detecção de metais, a metalômica procura verificar a distribuição das espécies metálicas e metaloides e elucidar aspectos fisiológicos e funcionais das biomoléculas que contenham íons metálicos em suas estruturas.

Padilha disse que há duas maneiras de uma proteína carrear metais. A primeira é quando o metal faz parte da própria molécula de proteína – caso da hemoglobina, metaloproteína que possui átomos de ferro utilizados para transportar oxigênio.

A outra maneira de transporte é quando o metal ou metaloide se liga à proteína por ligações não específicas, formando uma proteína denominada metal-binding. É desse último grupo que a equipe de pesquisa elegeu proteínas capazes de atuar como possíveis biomarcadores da presença de mercúrio nos peixes.

“Identificamos oito tipos de proteínas e 16 isoformas como fortes candidatas a biomarcadores”, informou o professor. Isoformas são proteínas com mesma função, porém, codificadas por genes distintos e que apresentam pequenas diferenças em suas sequências peptídicas. A definição de um biomarcardor eficaz ocorrerá em uma próxima etapa do trabalho. Neste projeto, os pesquisadores aprimoraram os métodos de estudo metaloproteômico do mercúrio, segundo o professor da Unesp.

A rotina de pesquisa iniciava-se em Rondônia com a captura dos peixes, execução de biometria e a retirada de tecidos muscular e hepático para as análises. As amostras eram congeladas a -190°C em nitrogênio líquido e enviadas à Unesp. Nos laboratórios em Botucatu, os pesquisadores enfrentaram uma das partes mais complicadas do trabalho, a extração das proteínas.

“O desafio é extrair a proteína sem destruir nem alterar sua estrutura, ainda que isso implicasse a destruição do tecido que a continha”, contou Padilha. Optou-se por um método simples, a maceração do tecido em nitrogênio líquido e em água ultrapura.

A solução aquosa obtida passava por eletroforese bidimensional e depois por fluorescência de raios X por radiação síncrotron, etapa realizada nas instalações do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP).

O trabalho fez um mapeamento qualitativo que determinou os chamados spots proteicos ou possíveis proteínas que continham mercúrio. A determinação quantitativa do mercúrio nos spots proteicos foi feita por espectrometria de absorção atômica em forno de grafite e a realização de cálculos estequiométricos complexos. Por isso, um dos resultados da pesquisa foi o aperfeiçoamento de uma nova tecnologia para determinação de mercúrio, publicada no Food Chemistry em dezembro de 2013.

Uma das revelações mais importantes do projeto foi a especial relação do mercúrio com as proteínas pequenas. O metal foi encontrado principalmente nas proteínas de baixa massa molar, que seriam as suas principais carreadoras e mais fortes candidatas a biomarcadores.

Já as células do tecido hepático são particularmente importantes para esse estudo porque, na presença de alguns metais, o fígado produz as chamadas metalotioneínas, proteínas detoxificadoras e diretamente relacionadas à presença de metais no organismo.

Nos animais estudados no projeto não foram encontradas quantidades de mercúrio igual ou superior a 500 microgramas por quilo de carne, limite máximo estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para esse metal.

No entanto, Padilha alertou para os efeitos no longo prazo. “Devemos considerar que, quando um metal se ligou a uma proteína, é porque ele deslocou algum elemento essencial que poderá fazer falta no organismo”, disse.

Além disso, o pesquisador lembra que o mercúrio, assim como metais semelhantes, tem a propriedade de se acumular no organismo, provocando efeitos na saúde quando atinge quantidades maiores com o passar do tempo.

Mercúrio no leite materno

Até o momento, o projeto de pesquisa produziu quatro artigos científicos publicados e a tese de doutorado “Desenvolvimento de métodos analíticos para estudo metalômico do mercúrio em peixes coletados na área de influência do AHE Jirau, Bacia do Rio Madeira”, da bióloga Paula Martin de Moraes que recebeu bolsa FAPESP na modalidade Doutorado Direto.

O trabalho também rendeu a pesquisa de mestrado “Estudo metaloproteômico do mercúrio em amostras de tecido hepático de peixes coletados na área de influência do AHE Jirau – Bacia do Rio Madeira”, do biólogo José Cavalcante Souza Vieira, também bolsista FAPESP. Ambos foram orientados por Padilha.

Felipe André dos Santos participou do projeto analisando, em seu doutorado, outro tipo de amostra. Em vez de peixes, Santos aplicou técnicas de metalômica no leite materno coletado entre a população ribeirinha do Rio Madeira, com o objetivo de detectar traços de mercúrio e encontrar biomarcadores para o metal.

A investigação gerou a tese “Estudo metalômico do mercúrio em leite materno coletado da população ribeirinha da área de influência do AHE Jirau – Bacia do Rio Madeira”. “A proposta se baseou na hipótese de que a população ribeirinha, por consumir mais pescado do rio em relação à população urbana, estaria mais sujeita ao mercúrio encontrado nos peixes”, explicou Padilha, que também orientou Santos.

Como no projeto maior, o objetivo da pesquisa de Santos consistiu em identificar proteínas responsáveis pelo transporte de mercúrio, só que por meio de amostras de leite materno. Inicialmente, o estudante selecionou as lactantes que estavam contaminadas por mercúrio. Essa etapa foi executada analisando-se o cabelo das mulheres que estavam amamentando, uma vez que os cabelos têm a propriedade de acumular metais potencialmente tóxicos.

Depois, foram analisadas amostras de leite do grupo que teve a contaminação confirmada. Santos obteve o proteoma de cada amostra por meio de eletroforese bidimensional e, após submeter o material a outras técnicas analíticas, ele selecionou proteínas nas quais o mercúrio se mostrou presente. Esse trabalho levantou a proteína lisozima C como um possível biomarcador do mercúrio.

O projeto de pesquisa coordenado por Padilha contou com a participação de especialistas da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás) e da Energia Sustentável do Brasil (ESBR), consórcio que administra a usina hidrelétrica de Jirau.

Por Fabio Reynol
Fonte: Agência Fapesp

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