Nos últimos dias o jornal Folha de Boa Vista deu destaque as questões indígenas em Roraima envolvendo a Secretária de Estado do Índio, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiur) em temas como emissão de documentos indígenas, participação na política indigenista do Estado, entre outras.

Indígenas invadem secretaria e cobram nomeação para a Pasta

Um grupo de indígenas ocupou ontem (17/01) a sede da Secretaria de Estado do Índio, localizada na avenida Brigadeiro Eduardo Gomes, no Parque Anauá. A reivindicação é para que o gerenciamento dos recursos financeiros previstos pela Constituição seja feito pelos próprios indígenas.

Eles prometem “matar um boi” todos os dias até que o governador Anchieta Júnior (PSDB) atenda aos pedidos de exonerar o atual secretário Chico Roberto e nomear 40 indígenas em cargos comissionados.

O líder do movimento, Rondineli Abel Moraes, em entrevista à Folha, propôs que a secretaria deve ser administrada por um indígena. “Queremos a pasta na mão do índio para que possamos gerenciar de forma correta os nossos recursos. Sabemos onde cada centavo precisa ser aplicado. Só sairemos quando for publicada no Diário Oficial a nomeação de um secretário indicado por nós”, disse.

“Os recursos dessa secretaria nunca chegaram ao índio. Nós sabemos que eles têm disponíveis mais de R$6 milhões para serem investidos na causa, mas nunca fomos beneficiados dentro das comunidades. Sequer um caminhão nós temos para transportar alimentos. Estamos abandonados pelo governo. Eles estão comprando votos com o nosso material”, denunciou.

Rondinel Abel afirmou ainda que, caso o governo não atenda as reivindicações, serão mobilizadas mais de 300 pessoas para ocupar o prédio. “Queremos um secretário indicado pelo povo indígena. Na segunda-feira, em coletiva marcada para as 9h da manhã, faremos a indicação do nome”.

Secretário do Índio chama a polícia

O secretário Chico Roberto denunciou, durante a mobilização, que os indígenas chegaram ameaçando os funcionários e pedindo para que todos saíssem das salas. “A manifestação é legítima, mas até agora ninguém entregou qualquer reivindicação. Não sabemos o que eles querem. Eles só chegaram, de uma hora para outra, e pediram para que nos retirássemos e que fôssemos embora, ameaçando agredir os funcionários. Sou servidor público e vou defender o bem público. Eles invadiram as salas e eu acionei a polícia para que nada fosse depredado”, afirmou.

Policiais civis e militares permaneceram no local durante a ocupação e recolheram diversos pedaços de pau, com pinturas artesanais, dos indígenas.

O indígena Denis de Almeida, que também participava da manifestação, afirmou que ninguém tentou agredir qualquer servidor, contrariando a denúncia do secretário. “Pedimos apenas para que todos saíssem das salas que ocuparíamos o local. Viemos para ficar”, disse.

DOCUMENTO PARA ÍNDIOS – Procurador denuncia tabela de preços

O procurador responsável pela Seção de Indígenas da Advocacia-Geral da União (AGU) em Roraima, Wilson Précoma, denunciou com exclusividade para a Folha que tuxauas de comunidades comandadas pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) e pela Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiur) estariam cobrando taxa para os indígenas poderem ter acesso a documentos como identidade, Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani) e outros para fins previdenciários.

Mesmo sem citar nomes, Précoma conta que recebeu várias denúncias de índios que afirmavam ter que pagar taxa para poder tirar os documentos e requisições que deveriam ser atribuição da Funai (Fundação Nacional do Índio).

“Para minha surpresa, encontrei até tabela com os tuxauas que cobravam taxas dos índios, em especial aqueles que não estão afinados com a política do CIR ou da Sodiur. Estas duas agremiações ficam negociando a expedição de documentos e, quando o indígena não tem ligação com nenhuma das duas associações, eles acabam estabelecendo tabelas com cobranças de R$100,00 para emissão de Rani, R$ 400,00 a R$500,00 para declaração de atividade rural para fins de aposentadoria ou obtenção de salário maternidade”, afirmou.

Segundo Précoma, quando não há essa conta/prestação ou os indígenas não apresentam meios de assegurar o pagamento antecipado, os tuxauas não emitem o documento. “Alguns afirmam que eles pegam algo de valor que o indígena tem como forma de garantir o pagamento até quando receberem a aposentadoria ou o benefício, por exemplo. E os coordenadores técnicos da Funai local são omissos nestes casos e só atendem o indígena se tiverem uma requisição do tuxaua”, frisou. “A Funai infelizmente delegou para os tuxauas o poder que é dela”.

No entendimento de Précoma, tanto o CIR com a Sodiur tem a única intenção de reter o índio para trabalhar na terra de acordo com a sua política “análoga à escravidão”. “Eles querem deixar o índio sem documento, com a família desse índio sem condições de receber salário maternidade dos filhos e sem possibilidade que se aposentem. Porque é uma forma de reter o índio na terra e trabalhar da forma que eles querem: análoga à escravidão”, afirmou.

O procurador faz um desafio. “É só ir ao Maturuca [Terra Indígena Raposa Serra do Sol] e ver quantos retiros estão em poder de uma única família. Todos os filhos e sobrinhos de uma liderança têm retiro e por que os outros índios não têm retiro, mas apenas trabalham nestes retiros?”, questionou.

Para tentar definir a prioridade dos retiros em detrimento das roças plantadas pelos demais indígenas, Précoma afirmou: “Para as lideranças do CIR, o gado é mais importante que os próprios índios, o gado exige terras e eles querem expandir e ter outras ocupações. Esse é o processo, colocar o gado para privilegiar um grupo de pessoas que vão ficar sozinhos dentro da área indígena e os outros serão expulsos para as cidades”, frisou.

Conforme ele, hoje a Terra Indígena Raposa Serra do Sol tem 35 mil habitantes e aproximadamente 55 mil cabeças de gado, “sendo que 90% estão nas mãos de índios particulares, em que na verdade deveria ser de todos os índios”. “E isso pode ser constatado numa ação policial que prendeu um indígena que roubou gado de outro índio. Isso é um absurdo, uma inversão das coisas e acontece porque o gado deveria ser de todos”, frisou.

FUNAI – A Folha tentou contato telefônico com o coordenador da Funai e até deixou mensagem na caixa postal, mas não houve retorno até as 18h. Da mesma forma fez várias ligações para os coordenadores do CIR e da Sodiur, mas não fomos atendidos. Na sede do CIR, um atendente informou que o coordenador estava no interior e só retornava na segunda-feira.

Pressões forçam êxodo indígena, diz Précoma

Está se tornando comum ver grupos de índios perambulando pelas cidades do interior e até na capital. Alguns mal vestidos e com aspectos de desnutrição. No entendimento do procurador da AGU em Roraima, Wilson Précoma, a situação chegou a esse ponto por pressão das associações indígenas CIR e Sodiur, que querem o monopólio da área indígena e controlar tudo em razão do latifúndio de uso da terra nas áreas indígenas.

“As lideranças do CIR e da Sodiur são os responsáveis pelo êxodo indígena que acontece em Roraima. Eles detêm as fazendas dos não índios e deram uma nova roupagem produtiva a estas terras denominando as fazendas de retiro e as sorteiam entre suas lideranças para que essas pessoas tenham 200, 300, 900 cabeças de gado e até conseguiram inverter a situação de quem planta roça: a de que quem tem roça é que deve cercar para não ser devorada pelo gado”, afirmou.

Précoma destacou que se o índio não concordar com a expansão da criação de gado e se limitar a sua produção na roça, ele passa a ser marginalizado.

“E um dos reflexos dessa situação é o inchaço das cidades próximas às áreas indígenas e dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, como é o caso de Uiramutã, Normandia, Pacaraima e Alto Alegre, que estão recebendo um grande número de índios que se sentem perseguidos pelas lideranças indígenas de suas comunidades e acabam na obrigação de morar nas cidades e até nos lixões de Boa Vista, como já está sendo visto”, disse.

O procurador sustenta que a responsabilidade maior dessa migração em Roraima é do CIR. “Responsabilizo mais o CIR que a Sodiur pela migração que está acontecendo em Roraima, porque o CIR tinha um discurso de coletividade da demarcação da terra indígena, mas na prática está fazendo o contrário. O CIR vendia para o Brasil e o mundo que a terra seria explorada de modo coletivo. Já a Sodiur sempre defendeu que a terra deveria ser de caráter privado e está apenas mantendo o que sempre defendeu”, afirmou.

Procurador afirma que indígenas enfrentam situação difícil na cidade

No entendimento do procurador, com a chegada dos índios nas cidades surgem outros problemas, pois sem documentos e referencial da comunidade acabam sendo presa fácil para trabalhos em fazendas em situação análoga à escravidão.

“Essa situação de analogia a escravidão acontece tanto dentro da área indígena como fora dela”, afirmou. E nós estávamos combatendo essa situação de maneira eficaz, tentando regularizar a situação desse povo sem documentos que estão na cidade.

Ele explicou que, em alguns casos, os índios sem documentos estavam sendo explorados tanto pelos indígenas como pelos não indígenas e a sua intervenção, quanto procurador, nunca foram aceitas pelo CIR.

“O CIR tem vocação de colocar fazendas em áreas indígenas e constatei in loco fazendas com 300, 500, 900 e até uma com 3.200 cabeças de gado. Pelo que entendo, a área indígena é coletiva e, se tem gado particular, com dono nessa área, então está havendo distorção. E os indígenas que não pertencem a nenhuma associação é que estão perdendo com isso por não terem privilégio político nem econômico como os parentes de lideranças”, afirmou.

Para justificar a análise que faz sobre o aumento da ‘analogia à escravidão”, Précoma afirmou que antes os indígenas que trabalhavam como vaqueiros nas fazendas dos brancos recebiam a sorte de 4 por 1 (a cada quatro nascimentos de gado, um era do vaqueiro). Hoje, os indígenas continuam trabalhando como vaqueiros nos retiros (fazendas) e a proporção de sorte é de 5 por 1.

Finalizando, Précoma destacou que o índio não vem para a cidade em busca de melhorias, mas por ter sofrido perseguição pelas lideranças dado o regime de latifúndio do uso da terra implementado pelas associações e sido expulso de suas terras. “Digo isso depois de reverter situações e tirarmos documentos de indígenas que vêm para a cidade e, quando o aposentamos, eles tendem a escolher outra comunidade onde vai sofrer menos pressão e volta para sua terra ao ter seus direitos reconhecidos”, frisou.

COBRANÇA DE TAXA – CIR e Sodiur rebatem denúncias de Précoma

Os coordenadores do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Mário Nicácio, e da Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiur), Hélio Gerônimo de Lima, rebateram as denúncias apresentadas pelo responsável pela Seção de Indígenas da Advocacia Geral da União (AGU) em Roraima, Wilson Précoma, de que tuxauas de comunidades comandadas pelas duas entidades teriam uma tabela para cobrar taxa para que os indígenas possam ter acesso a documentos como identidade, Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani) e outros para fins previdenciários, juntos à Funai (Fundação Nacional do Índio).

Recém-eleito presidente da Sodiur, no dia 6 de janeiro, Hélio Lima, tuxaua da comunidade Canavial, no baixo Rio Cotingo, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Município de Normandia, disse que tomou conhecimento do episódio pela Folha, mas que desconhece a existência de tabela em qualquer comunidade associada à Sodiur. “Todo documento para aposentadoria, e outros, tem que ser requisitados através do tuxaua, mas nunca ouvi falar de tabela ou de cobrança”, disse.

Já o coordenador do CIR, Mário Nicácio, disse desconhecer qualquer tabela ou cobrança feita pelos tuxauas para emitir requisição de documentos. Afirmou que pretende chamar o procurador para conversar. “Somos contra qualquer tipo de cobrança e, se o procurador conhece, que mostre onde e vamos conversar para que isso acabe, pois existe um regimento onde fala que todos os documentos são grátis”, frisou. “O que acontece, que é do meu conhecimento, é que, às vezes, as pessoas contribuem com o tuxaua para as despesas de xerox, autenticação, transporte e alimentação. Mas pagar para poder ter documento isso não existe”.

Nicácio informou que essa proposta de apenas o tuxaua poder emitir requisição para tirar documentos na Funai foi acordada em Assembleia Geral do CIR junto com a Funai e representantes de índios da Venezuela e da Guiana. “Ficou definido que apenas os tuxauas poderiam emitir requisição para tirar documentos para que pudesse ter mais controle, já que existem índios das aldeias, da cidade, da Guiana e da Venezuela. E a assinatura do tuxaua vai afirmar que aquele índio mora na comunidade”, frisou.

FUNAI – A Folha tentou, mais uma vez, contato telefônico com o coordenador da Funai, André Vasconcelos, mas seu telefone dava na caixa postal. A informação é que ele está de férias.

CIR vai pedir retratação judicial a respeito da distribuição de gado

A denúncia de que o CIR tem dado privilégios a tuxauas e seus parentes na distribuição de retiros (fazendas) com até 3.200 cabeças de gado, feita pelo procurador responsável pela Seção de Indígenas da Advocacia Geral da União (AGU) em Roraima, Wilson Précoma, foi criticada pelo coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Mário Nicácio, que promete ir à Justiça para pedir retratação.

“O CIR vai ter a postura de pedir retratação judicial para ele [procurador Wilson Précoma] provar que isso está acontecendo”, frisou. “Não é a primeira vez que ele fala que índio é latifundiário e amanhã [hoje] vamos procurar orientação jurídica, tanto do CIR quanto da própria AGU, para que ele possa provar que existe esse latifúndio ou o privilégio que ele afirma”.

Quanto às pressões denunciadas pelo procurador de que os indígenas estariam sofrendo para apoiar a expansão da criação de gado na terra indígena, em detrimento à plantação de roça, o coordenador do CIR destacou a existência de um projeto de criação de gado comunitário.

“O gado não tem dono, pertence a toda comunidade e é distribuído de acordo com a estrutura e potencialidade da família de criar esse gado. E a distribuição é por sorte, ou seja, a cada quatro bezerros nascidos, um é da família que trata daquele gado”, explicou. “Conhecemos famílias que já ganharam 50 bezerros num ano e que passam a ser deles. Podem colocar ferro [marca no gado que define o dono]. Mas, 3.200 cabeças? Isso não existe”, frisou.

Indígenas estão voltando para suas comunidades, afirma coordenador

O coordenador do CIR, Mário Nicácio, afirmou que, ao contrário do que foi denunciado, depois da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, muitos índios que haviam saído das comunidades estão voltando para cuidar da terra e criar gado.

“Com os benefícios que estão chegando às comunidades, como o Luz para Todos, e a oportunidade de criar gado e cuidar da terra têm feito com que muitos índios voltem para a sua comunidade. E isso mostra que não existe pressão. Mas não podemos segurar o índio e se ele quiser sair e ir para a cidade, não prendemos, é um direito dele morar ou não na comunidade”, frisou.

Perguntado a respeito do porquê de índios saírem de suas comunidades para morar nas cidades, ele disse que a violência e a falta de perspectivas foram as causas apontadas num relatório elaborado por eles no ano passado. “Muitos, em especial da Raposa Serra do Sol, estavam acostumados a trabalhar nas fazendas dos brancos e achavam que não poderiam continuar o trabalho. E isso fez com que fossem para as cidades. E outros que não encontram infraestrutura, como escolas e estradas e a falta de políticas públicas pelos municípios, Estado e o Governo Federal que estão omissos e abandonaram as comunidades indígenas”, disse. “Mas, aos poucos, estão vendo que podem voltar para suas comunidades e para trabalhar na criação de gado”.

RIBAMAR ROCHA
FONTE: Folha de Boa Vista (disponível em: janeiro 2014)