Alojamento precário, péssimas condições de higiene, indisponibilidade de água potável, jornada exaustiva, falta de registro em carteira de trabalho. As violações típicas à dignidade do ser humano que configuram o uso de mão de obra em condições análogas à escravidão repetem-se invariavelmente nos casos de resgate de trabalhadores na produção de carvão vegetal incluídos na atualização do Cadastro de Empregadores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a chamada “lista suja”.
Divulgada na última segunda-feira, 30 de dezembro, a relação traz, entre os novos nomes, 21 empregadores cuja atividade é a fabricação da substância negra através da queima de madeira – praticamente um quinto das inclusões. No total, 162 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo nesse setor. Já a siderurgia de ferro-gusa, que no Brasil utiliza como combustível e matéria-prima o carvão vegetal, responde por duas inclusões, num total de 55 libertados.
O Brasil é o maior produtor mundial da substância, segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). De acordo com o “Balanço Energético Nacional 2013”, do Ministério de Minas e Energia e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em 2012 a produção total foi de 7,4 milhões de toneladas. Desses, 5,2 milhões de toneladas, ou 70,3% do total, foram utilizados na produção nacional de ferro-gusa e aço. Diferentemente de outros países produtores de ferro-gusa e derivados, o Brasil se caracteriza pelo uso significativo do carvão vegetal como combustível e agente redutor nos altos-fornos de redução de minérios de ferro, em substituição ao coque metalúrgico – cuja matéria-prima é o carvão mineral.
O carvão de origem vegetal é considerado uma alternativa mais sustentável em relação ao coque – enquanto este libera enxofre quando queimado, a produção daquele pode incluir o plantio de árvores para compensar os gases de efeito estufa liberados na sua queima. No entanto, segundo o relatório “Combate à devastação ambiental e trabalho escravo na produção do ferro e do aço”, elaborado em 2012 pela Repórter Brasil, esse potencial “é colocado em xeque pela realidade do desmatamento e exploração degradante do trabalho que marca parte considerável da produção de carvão vegetal no Brasil (…) basta citar que atualmente cerca de 60% do carvão vegetal feito aqui é proveniente de florestas nativas. Além disso, há destruição ambiental e ocorrência de trabalho análogo à escravidão mesmo nos casos das chamadas ‘florestas plantadas’, que os movimentos sociais preferem denominar de ‘desertos verdes’”. Entre as carvoarias incluídas na atualização da “lista suja” do Ministério do Trabalho, 20 utilizam florestas nativas, enquanto duas fazem uso de florestas plantadas.
A cadeia de ferro-gusa, portanto, ao utilizar na sua produção carvão vegetal muitas vezes proveniente de desmatamento ilegal e fabricado com mão de obra escrava, contribui para esse quadro de impactos socioambientais. No estudo de 2012 da Repórter Brasil, além disso, inclusive grandes montadoras de automóveis, como Fiat, Ford, General Motors, Volkswagen e Peugeot, entre outras, foram identificadas na cadeia produtiva da substância obtida pela queima de madeira.
Sem proteção
Na mais recente atualização da “lista suja”, outro padrão de violação nos casos de trabalho escravo na produção de carvão vegetal é o não fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos trabalhadores. Todo ciclo de fabricação do carvão vegetal implica alto risco aos empregados envolvidos: corte de madeira, transporte da lenha até a porta do forno, abastecimento do forno, acendimento do fogo, vigilância do cozimento, retirada do carvão etc. Dessa forma, o trabalhador é submetido, ao longo de todo esse processo, a gases tóxicos, fuligem, cinzas, pó e altas temperaturas, o que pode lhe causar problemas como desidratação, queimaduras, lesões musculares graves, hérnias inguinais e escrotais e, inclusive, fraturas ou cortes, em caso de acidente.
Foi o que aconteceu com um dos funcionários de Vicente Araújo Soares, empregador incluído na “lista suja” por um flagrante de submissão de 15 pessoas a condições análogas à escravidão em duas fazendas em Monte Alegre do Piauí (PI). Sem os devidos EPIs, o trabalhador cortou a perna após perder o controle da motosserra enquanto cortava madeira para ser levada aos fornos. O acidente foi, inclusive, presenciado por fiscais do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), vinculado ao MTE. Conforme reportagem publicada na época, abril de 2012, “além da ausência de equipamentos básicos de proteção, os fiscais identificaram diversas outras irregularidades trabalhistas e condições degradantes no desmatamento para abertura de pasto para gado. A extração de madeira servia para produção de carvão”.
Maior libertação
Entre as carvoarias, o maior resgate ocorreu na de Dois Irmãos, em fevereiro de 2011, em Natividade (TO). Seu representante legal, Antônio Carlos Lima, foi quem teve o nome incluído na “lista suja” do trabalho escravo. Vinte trabalhadores foram submetidos a condições degradantes na frente de trabalho e no alojamento. Além disso, tiveram a liberdade restringida por meio de constantes ameaças do empregador, que chegou a confessar ter agredido um trabalhador com socos e chutes. Os resgatados declararam que o patrão andava armado para intimidá-los.
A carvoaria de Lima fica dentro da Fazenda Pedra Branca, cujo proprietário é Ivandro Luís Ramos, morador de Luís Eduardo Magalhães (BA). De acordo com a apuração da fiscalização, Ivandro tem um contrato de arrendamento rural e cedeu a área para que Antônio fizesse a limpeza da terra e utilizasse a vegetação como matéria-prima na fabricação de carvão vegetal. Esse tipo de “acordo” é comum, pois simplifica a “limpeza” do terreno para que o proprietário possa formar pastagem com vistas à criação de gado bovino. A pecuária é o setor com o maior número de inclusões na atualização da “lista suja”, conforme é possível visualizar no infográfico abaixo:
Divisão por atividades
Nesse caso específico, foram muitas as violações flagradas. A alimentação, por exemplo, era preparada sem condições básicas de higiene e com sal destinado aos bois, não de cozinha. As refeições eram realizadas no meio do mato, próximo aos fornos de carvão ou em toras de madeiras, usadas como bancos. Os empregados não tinham proteção contra sol ou chuva, animais domésticos ou silvestres. A água consumida não era potável. Nas frentes de trabalho, não havia instalações sanitárias e os funcionários trabalhavam sem EPIs, expostos a altas temperaturas, fumaça, poeira e ao impacto das cargas de carvão, carregadas diretamente no ombro. Além disso, foram constatadas diversas irregularidades nos dormitórios. A Fazenda Pedra Branca, onde a carvoaria funcionava, recebeu financiamento do Banco da Amazônia.
Outros crimes
A relação de carvoeiros entre os escravagistas incluídos na atualização da “lista suja” do Ministério do Trabalho contém, ainda, nomes envolvidos em outros crimes, além do de submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. José Carlos Izidoro de Souza, que teve nove de seus funcionários libertados em 2012 em Cassilândia (MS), foi condenado em primeira instância pela Justiça de São Paulo por receptação de carga roubada: três tratores e uma máquina escavo-carregadeira.
Osmar Ramos Gomes, que entra na atualização por ter sido flagrado explorando duas pessoas em Rio Verde (GO), teria tentado matar um dos homens resgatados. Meses após a libertação, o empregado em questão voltou a ser aliciado e, ao ficarem sozinhos durante uma entrega de carvão, o antigo patrão sacou uma arma e chegou a atingi-lo na perna, conforme registrado em inquérito aberto pela polícia local.
Já a empresa da qual Valdecir Brás Luchi é sócio-proprietário, a Carvoaria Transcametá – EPP), é apontada em documento do Ministério Público Federal do Pará (MPF/PA) como ré em ação de R$ 3,8 milhões por uso de 3 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Luchi foi incluído na “lista suja” do trabalho escravo por causa da libertação de 17 funcionários em duas carvoarias de Breu Branco (PA). Por sua vez, Angelo Augusto da Silva e Jorcelino Tiago Queiroz têm suas terras embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por crime ambiental. Queiroz, flagrado explorando dois trabalhadores em condições análogas à escravidão em Ribeirão Cascalheira (MT), foi eleito suplente de vereador pelo Partido Republicano (PR) em 2012.
Siderurgia
As duas siderúrgicas de ferro-gusa incluídas na “lista suja” do trabalho escravo são a Fergubel – Ferro Gusa Bela Vista Ltda, por uma libertação de 35 trabalhadores em Porto Alegre do Piauí (PI), em 2008, e a Usina Siderúrgica de Marabá S.A. (Usimar), por ter submetido 20 pessoas a condições análogas à escravidão em Abel Figueiredo (PA), em 2006.
Em 2008, a Usimar foi excluída do Instituto Carvão Cidadão (ICC), criado pelas siderúrgicas do Pólo Carajás, no Pará, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho nas carvoarias fornecedoras de carvão vegetal. Como consequência, a empresa foi também excluída do Pacto Nacional Pela Erradicação do Trabalho Escravo, articulação de mais de 180 empresas e associações engajadas no combate à exploração do trabalho escravo contemporâneo. Sua saída foi decorrência da série de sanções e autuações recebidas. Em abril de 2007, a Usimar foi multada pelo Ibama por consumo de carvão ilegal. No ano seguinte, foi autuada pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará (Sema) por não ter cumprido condicionantes para a proteção do meio ambiente.
Apesar disso, a Usimar teve um de seus projetos – implantação de uma unidade de cogeração de energia elétrica – financiados pelo Banco da Amazônia. A instituição financeira, cuja “missão” é apoiar empreendimentos conscientes ambientalmente, foi responsável por cerca de 40% do valor total.
A reportagem tentou entrar em contato com Antônio Carlos Lima, Vicente Araújo Soares, José Carlos Izidoro de Souza, Osmar Ramos Gomes, Valdecir Brás Luchi, Angelo Augusto da Silva, Jorcelino Tiago Queiroz, Fergubel e Usimar, mas não obteve sucesso até a publicação desta matéria.
FONTE: Repórter Brasil
VER MATÉRIA COMPLETA EM: Carvoarias representam um quinto das inclusões na ‘lista suja’ do trabalho escravo – Amazônia Notícias e Informação (amazonia.org.br)
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