A terceira reunião técnica entre organizações governamentais e não governamentais dos dois países aconteceu em Mitú, na Amazônia colombiana, para dar continuidade à construção e consolidação do programa de cartografia cultural e salvaguarda de sítios sagrados dos indígenas que vivem no noroeste amazônico.

Fazem parte da aliança binacional diversas organizações indígenas do noroeste amazônico, com destaque para a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) no Brasil e Acaipi (Asociación de Autoridades Tradicionales Indígenas del Río Pirá Paraná), Acuris e Aciya na Colômbia, além de instituições governamentais e não governamentais dos dois países: no Brasil, o Instituto Socioambiental (ISA) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); na Colômbia, a Fundación Gaia Amazonas, Fundación Etnollano, Tropembos, Ministerio de Cultura, Parques Nacionales Naturales e Fondo Patrimonio Natural.

Realizada entre 25 e 27/11, foi a terceira reunião técnica no âmbito da iniciativa. A primeira ocorreu em 2009, nas cidades fronteiriças de Letícia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil), ocasião em que foram definidas as primeiras diretrizes para a consolidação da aliança binacional e para a construção de uma política de proteção aos sítios sagrados e territórios indígenas do noroeste amazônico. A segunda reunião técnica ocorreu em 2012, novamente em Letícia (Colômbia).

Localizada às margens do Rio Uaupés, um dos principais formadores do Rio Negro, a cidade de Mitú foi a escolhida. O objetivo da reunião foi avaliar o cumprimento das ações acordadas em 2012 e estabelecer um novo plano de metas e estratégias de ação para os próximos três anos, em nível nacional e binacional, considerando as particularidades e o cenário político de cada país.

Política de proteção deve considerar noção indígena de território

 

Entre os assuntos discutidos, enfatizou-se a importância de construir uma política efetiva de proteção dos sítios sagrados e dos sistemas de conhecimento a eles associados que leve em conta a própria noção indígena de território, a qual em muitos aspectos difere do modo como o Estado e a própria sociedade envolvente o concebe.

É que apesar de reconhecer e viver as dificuldades impostas pela delimitação fronteiriça e pelas políticas de controle dos Estados Nacionais, a população indígena do noroeste amazônico considera este vasto território como um espaço contínuo, por onde milenarmente circulam pessoas, coisas e saberes. Do mesmo modo, possuem uma relação bastante especial com o território em que vivem, a qual vai muito além de uma relação puramente utilitária fundada na necessidade de subsistência e obtenção de recursos.

O território e suas paisagens possuem também um alto valor cultural e espiritual, sendo elementos centrais no complexo sistema cosmológico que caracteriza a visão de mundo destes povos. Diversas cachoeiras, serras, pedrais e outras formações características das paisagens do noroeste amazônico são para os povos indígenas importantes reservatórios de energia vital responsáveis pelo equilíbrio dos ecossistemas e pela vida de humanos e não humanos. Oriundos dos tempos da origem do mundo, estes locais constituem as moradas de diversos espíritos guardiões das florestas, dos rios, dos animais e dos alimentos cultivados. Por isso exigem atenção e cuidado especial por parte dos pajés, curadores e mesmo das pessoas comuns. Os nomes que estes locais recebem nas línguas nativas são de difícil tradução, mas os próprios indígenas referem-se a eles como “sítios sagrados” quando precisam se expressar em português ou espanhol.

Esta cosmovisão sistêmica e socioecológica dos povos indígenas do noroeste amazônico constitui a base dos conhecimentos e práticas tradicionais de manejo de recursos e também de uma ética que orienta a relação que eles estabelecem com as paisagens e com a multiplicidade de seres que povoam os rios e florestas da região. O modo especial de compreender e se relacionar com o meio em que vivem vem ao longo de milênios colaborando para compor essa extensa rede transnacional de paisagens e biodiversidade que é o noroeste amazônico. Por isso, tais concepções deveriam ser consideradas e levadas em conta em qualquer política de desenvolvimento e mesmo de gestão ambiental que se queira propor para os territórios indígenas dessa região.

Desafio é criar mecanismos de proteção frente a políticas nacionais de desenvolvimento

Esta é uma das preocupações que vem guiando o alinhamento das ações no âmbito da iniciativa binacional. De um lado, as dificuldades e desafios em criar mecanismos políticos e jurídicos que garantam a proteção dos territórios indígenas e sítios sagrados frente às políticas nacionais de desenvolvimento e aos interesses econômicos que recaem sobre a região: mineração, projetos de hidrelétricas, obras de infraestrutura. De outro, o enorme desafio em se construir uma política de salvaguarda que opere a partir da própria lógica nativa de território, sem que isto esbarre nas questões intransponíveis da soberania nacional. Neste caso, o próprio Estado passaria a ter que reconhecer concepções, ocupações e usos do espaço que transcendem as fronteiras nacionais.

Com base nestas discussões mais amplas, os participantes de cada país, entre lideranças e conhecedores indígenas e representantes das instituições governamentais e não governamentais presentes ao encontro, fizeram um diagnóstico do contexto político atual, seja a nível local, nacional ou internacional. Depois apresentaram propostas para que a iniciativa binacional de cartografia cultural e a temática dos sítios sagrados passem a ser incluídos como um eixo norteador das políticas públicas que incidem sobre os territórios indígenas do noroeste amazônico.

O grupo brasileiro, formado por lideranças da Foirn e representantes do ISA, enfatizou a importância de se articular a iniciativa no processo de elaboração dos planos de gestão territorial e ambiental das Terras Indígenas do Rio Negro no âmbito da PNGATI (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas). Do mesmo modo, o grupo chamou a atenção para a necessidade de uma articulação mais ampla e um apoio mais efetivo em nível governamental, com o envolvimento de outros órgãos como o Ministério do Meio Ambiente e Funai.

Informe sobre os avanços da iniciativa foram apresentados

O encontro foi ainda uma oportunidade para que os líderes indígenas e as diversas instituições que fazem parte da aliança binacional pudessem avaliar e validar o primeiro produto conjunto da iniciativa ainda não publicado. Trata-se de um informe de avanços com exemplos de cartografia de sítios sagrados desenvolvidas pelas associações e comunidades indígenas do noroeste amazônico, bem como informações gerais sobre a região e a iniciativa binacional. Entre os temas tratados é dado destaque às atuais ameaças sobre os territórios indígenas e os sítios sagrados, sobretudo a mineração.

Ao final da reunião se elaborou um documento conjunto com os acordos estabelecidos entre as instituições e organizações indígenas participantes e um plano de metas a curto e médio prazo.

Entre os pontos de comum acordo e as ações planejadas para os próximos anos, vale destacar: (i) socialização do primeiro informe de avanços da iniciativa binacional em nível local, nacional e internacional e a construção de uma estratégia de comunicação para dar a conhecer a importância dos sítios sagrados e da cartografia cultural como ferramenta de gestão e governança dos povos indígenas sobre os seus territórios; (ii) ampliação da articulação política e institucional visando a participação e apoio de outros órgãos e entidades governamentais e não governamentais que trabalham para a proteção do patrimônio cultural e ambiental da região amazônica, bem como a inclusão do tema nas políticas e instrumentos de ordenamento territorial e gestão ambiental em nível local, nacional e binacional; (iii) formalização de acordos de gestão territorial e cultural entre organizações e comunidades indígenas das zonas diretamente fronteiriças do noroeste amazônico e realização de intercâmbios de experiências entre as organizações indígenas do Brasil e da Colômbia que fazem parte da aliança binacional; (iv) apoio mútuo e participação efetiva na definição de políticas de Estado para a salvaguarda dos sítios sagrados e territórios indígenas do Brasil e da Colômbia.

Outro ponto de comum acordo entre os participantes foi a importância de se fazer uma articulação política para o próximo ano a fim de reunir as(os) Ministras(os) da Cultura dos dois países para socializar os avanços da iniciativa e buscar apoio para a consolidação de uma política de Estado orientada à salvaguarda dos sítios sagrados e territórios indígenas do noroeste amazônico. A ideia é criar em ambos os países as condições necessárias para que a iniciativa binacional de cartografia cultural e as experiências de gestão territorial e cultural das organizações e comunidades indígenas, possam se consolidar enquanto um programa ou uma política específica de salvaguarda do patrimônio cultural e ambiental dos povos indígenas que habitam essa região de fronteira.

A iniciativa binacional de cartografia cultural já foi pauta de conversa entre o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, e o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, em virtude da visita deste ao Brasil em setembro de 2010. No primeiro semestre de 2012 voltou a entrar na pauta dos dois países em encontro realizado em Bogotá entre a então ministra da Cultura do Brasil, Ana de Hollanda, e a ministra de Cultura da Colômbia, Mariana Garcés Córdoba. Nas duas ocasiões, destacou-se a importância da iniciativa binacional para a promoção e fortalecimento das ações desenvolvidas por grupos que representam a diversidade cultural das duas nações e para contribuir com a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural associado à conservação da diversidade socioambiental nos territórios indígenas da Amazônia.

Fonte: ISA – Instituto Socioambiental  –  http://amazonia.org.br/2013/12/brasil-e-col%c3%b4mbia-debatem-salvaguarda-de-locais-sagrados-ind%c3%adgenas-do-noroeste-amaz%c3%b4nico/ (DISPONÍVEL EM: 11/12/2013)