Entre 24 de setembro e 3 de outubro aconteceu na comunidade Watoriki, região do Demini, na Terra Indígena Yanomami, a segunda oficina de pesquisa intercultural sobre os remédios da floresta Yanomami, conhecidos como hwerimamotima thëpë.  A atividade, que tem como foco a formação de pesquisadores Yanomami e o fortalecimento dos conhecimentos tradicionais, foi organizada pela Hutukara e pelo ISA como forma de reapropriação e ampliação de uma pesquisa etnobotânica acadêmica realizada há cerca de 20 anos. 

Entre 1993 e 1994, a pedido do então projeto de saúde da CCPY – Comissão Pró-Yanomami, o antropólogo Bruce Albert, do Institut de Recherche pour le Dèveloppement (IRD), na França, e o botânico Willian Milliken, do Royal Botanic Gardens, localizado em Kwe, subúrbio de Londres, realizaram um extenso levantamento sobre as plantas medicinais Yanomami com o objetivo de aprimorar o atendimento de saúde à este povo por meio da valorização da medicina tradicional. Foram levantadas 114 espécies de plantas e o material foi organizado em um projeto de livro (Hwërimamotima thëpë. Um primeiro manual de plantas medicinais Yanomami, ms, 207 pp.). Na época, porém, a publicação deste manuscrito acabou sendo cancelada, considerando que tanto a organização política dos Yanomami frente à sociedade nacional quanto a proteção jurídica dos conhecimentos indígenas eram ainda incipientes. Decidiu-se, portanto, esperar que os Yanomami tivessem melhores condições de controlar a divulgação de seus conhecimentos tradicionais e que a reflexão jurídica sobre o tema se consolidasse.

Nos últimos vinte anos, além dos progressos legislativos que acompanharam a criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a CCPY, e posteriormente o ISA, desenvolveram (desde 1998) um projeto educativo intercultural que garantiu a formação de uma geração de professores e pesquisadores yanomami e viabilizou a criação da Hutukara Associação Yanomami em 2004.

Em recente seminário realizado pelo ISA e pela Hutukara a fim de avaliar a situação do Projeto de Educação Yanomami, abordou-se o tema do incentivo às pesquisas auto-etnográficas Yanomami como uma das linhas prioritárias de valorização e perenização dos avanços realizados em 14 anos. Na ocasião, lideranças yanomami apontaram o conhecimento sobre plantas medicinais como uma prioridade a ser pesquisada. Daí surgiu a proposta de restituir os dados etnobotânicos coletados na década de 1990 à comunidade que os transmitiu, retomando a pesquisa sob a autoria dos próprios Yanomami, em sua própria língua e com a colaboração dos pesquisadores não indígenas e técnicos do ISA.

Foram então organizadas duas oficinas de pesquisa Yanomami sobre plantas medicinais na comunidade Watoriki, a primeira em novembro de 2012 e a segunda em setembro-outubro de 2013. Nove jovens pesquisadores formados pelo projeto de educação participaram das atividades, entre eles seis mulheres (Anita, Salomé, Ehuana, Suaná, Guiomar e Denise) e dois homens (Juninho, professor, e Nilson), sob a coordenação de Morzaniel Yanomami, da Hutukara. A equipe de pesquisa entrevistou longamente três homens de idade (pata thëpë) e grandes conhecedores da floresta (Justino, Lucas e Antônio), e contou com o apoio de uma equipe do ISA constituída pelo assessor Vicente Coelho e os pesquisadores associados Bruce Albert e William Milliken.

O roteiro da antiga pesquisa foi reformulado pelo grupo, elaborando-se um conjunto de perguntas em Yanomami para guiar as entrevistas dos pesquisadores com os pata thëpë (anciãos). A partir deste quadro o conjunto dos dados restituídos foi revisado, reorganizado e ampliado.

130 espécies são utilizadas pelos Yanomami A lista das espécies utilizadas pelos Yanomami de Watoriki nos tratamentos sintomáticos realizados após as sessões xamânicas chegou a um total de 130, sendo 115 espécies vegetais e 15 não vegetais (a maioria insetos). Para cada uma delas foram colhidas informações sobre: lugar de coleta, indicações de uso, partes usadas, modos de preparo e forma de administrar. A maior parte das espécies foi também experimentada e fotografada durante expedições “de trabalho de campo” da equipe da oficina em trilhas na floresta. Foram finalmente gravados depoimentos dos pata thëpë sobre o uso tradicional deste conhecimento terapêutico e o impacto negativo da história do contato sobre sua transmissão, bem como entrevistas dos jovens pesquisadores yanomami sobre a sua própria experiência.

Tanto a primeira quanto a segunda oficina foram realizadas em ambiente alegre e estudioso, no qual os mais velhos sentiram-se muito a vontade para repassar seus conhecimentos aos mais jovens que os anotaram e comentaram com muita atenção. Durante estas muitas conversas e depoimentos definiram-se também pontos importantes para a continuidade da pesquisa na sua fase de publicação e divulgação, bem como para sua “exportação” em outra áreas da Terra Indígena e, de modo geral, para a salvaguarda e transmissão deste patrimônio Yanomami.

O sistema de cura Yanomami tem como principal pilar a atuação dos xamãs focalizada na etiologia das doenças, buscando portanto agir sobre os diversos agentes e vetores maléficos identificados com a origem dos danos infligidos à imagem (utupë) dos pacientes. Já a cura com remédios da floresta, empreendida após a sessão xamânica, visa geralmente atuar na redução dos sintomas, como febres, tosses, dores diversas, etc.(Saiba mais no livro Saúde Yanomami: um manual etnolingüístico). O conhecimento sobre estes remédios era mantido e repassado tradicionalmente pelas mulheres idosas, que os aplicavam em complemento e em acordo com o trabalho de cura dos xamãs.

Conhecimento ficou guardado por alguns homens mais velhos A maioria das mulheres idosas e adultas, conhecedodras dos remédios da floresta de Watoriki, no entanto, morreu nos anos 1970 por conta das epidemias que assolaram a região dos rios Mapulau e Catrimani népoca. Sendo assim, o conhecimento fitoterapêutico do grupo ficou guardado apenas por alguns dos homens mais velhos cujas mães foram as últimas a morrer.

Tratando-se de um saber antes transmitido de mães à filhas, inexistem, portanto, desde o fim dos anos 1970, contextos e canais sociais que propiciem a transmissão dos conhecimentos fitoterápicos destes poucos homens mais velhos para as meninas e jovens mulheres da aldeia. De fato, o trabalho das oficinas deixou claro que o conhecimento botânico destes homens tinha sido transmitido aos pesquisadores nos anos 1990, porém não às mulheres da aldeia, antes ou depois desta pesquisa.

De certa maneira, o novo contexto social estabelecido pela oficina, reunindo principalmente jovens mães/pesquisadoras e homens mais velhos do grupo/”informantes”, contribui para conectar uma linha de transmissão culturalmente inédita, favorável à um retorno deste conhecimento ao mundo feminino. Antes da oficina as jovens mulheres conheciam de cinco à sete espécies dos 135 remédios da floresta enumerados pelos pata thëpë, justamente aqueles que suas mães, tendo perdido suas próprias mães quando eram crianças ou muito novas nos anos 1970, também conheciam.

Seguindo os objetivos definidos nas oficinas será elaborado a partir do material recolhido, um manual voltado para o uso cotidiano dos yanomami, apresentando agrupamentos de plantas relevantes em função dos males a serem tratados. Espera-se, assim, que o livro contribua para a disseminação prática deste conhecimento às novas gerações, evitando reduzi-lo à um mero patrimônio escrito.

A pesquisa realizada 20 atrás por Bruce Albert e William Milliken foi feita na perspectiva de resgatar um saber tradicional em via iminente de extinção num contexto de uso maciço de remédios industriais. Esta fase era marcada por um desinteresse na farmacopeia tradicional face ao impacto devastador das doenças trazidas pela invasão garimpeira do fim dos anos 1980, sendo que o conhecimento fitoterápico Yanomami tinha sido desenvolvido no quadro epidemiológico do período anterior ao contato e parecia “insuficiente” diante das novas doenças surgidas depois.

Agora, duas décadas após esta pesquisa, o quadro das doenças exógenas apresenta relativa estabilização e os remédios industriais deixaram de ser culturalmente supervalorizados. Os conhecimentos dos poucos pata thëpë sobreviventes começaram a despertar o interesse das novas gerações dos letrados Yanomami, criando-se assim o ambiente favorável à uma revisitação do saber terapêutico dos antigos, que foi o tema das oficinas.

Por: Bruce Albert e Vicente Albernaz Coelho

Fonte: ISA – Instituto Socioambiental – http://amazonia.org.br/2013/10/yanomami-desenvolvem-pesquisa-intercultural-sobre-plantas-medicinais-em-oficinas/