Há 25 anos, em 1988, uma nova Constituição afirmou que o país queria novos rumos. O Brasil aspirava a ser fraterno e justo.

O capítulo dos direitos dos índios na Constituição de 1988 foi emblemático dessa postura. Não tanto pelo reconhecimento do direito dos índios à terra, que já figurava em todas as Constituições do século 20. Mais significativo foi o abandono da ideia –esta do século 19– de que a missão da chamada civilização consistia em fazer os índios deixarem de ser índios. Em vez disso, pela primeira vez, celebrou-se a diversidade como um valor a ser preservado.

Em 1988, as expectativas de mineração e construção de hidrelétricas em áreas indígenas já eram contrárias à afirmação dos direitos dos índios. No entanto, a Confederação Nacional dos Geólogos se opôs aos interesses das mineradoras e entendeu que as terras indígenas constituíam uma reserva mineral. Ou seja, elas deveriam ser as últimas a serem consideradas para mineração, quando o minério fosse de interesse estratégico indiscutível e não houvesse alternativa no território nacional.

Na Constituinte, chegou-se finalmente a um acordo: exceções às garantias de usufruto exclusivo dos índios sobre suas terras, somente em caso de relevante interesse da União. Foi o parágrafo 6º do artigo 231 da CF. O entendimento era de que cada caso seria debatido e sua excepcionalidade comprovada.

Agora, 25 anos mais tarde, as exceções pretendem se tornar a regra. Como? Definindo –a pretexto de regulamentar o tal parágrafo– o “relevante interesse da União” de uma forma tão genérica e tão ampla que tudo caiba nela. Pasme: passa a ser de “relevante interesse nacional” qualquer mineração e hidrelétrica, é claro, além de estradas, oleodutos, gasodutos, aeroportos, portos fluviais e até assentamentos agrários. E no final, a pérola que trai a origem da manobra: podem ser “de relevante interesse da União” até terras indígenas intrusadas, com títulos contestáveis.

Esse é o teor de um projeto de lei complementar na Câmara, de origem ruralista, o PLP 227/2012. Outro projeto, de redação mais sutil, mas com efeitos até piores, foi apresentado recentemente pelo senador Romero Jucá do PMDB de Roraima, e, sem sequer ainda ter número, deve ter rápida tramitação. Deve-se reconhecer a esperteza da manobra, que pretende acabar de uma vez com todas as restrições.

O que está acontecendo? A bancada ruralista, aliada à bancada da mineração, está tomando conta do nosso Congresso. Por outro lado, desde 1988, as terras públicas remanescentes foram sendo destinadas para se garantir o que interessa ao Brasil como um todo, por exemplo a conservação ambiental.

A investida dos ruralistas, agora em posição de força no Congresso –e, portanto, no governo também– é no sentido de tornar legais todas as transgressões da lei que já eram praticadas. Primeiro, foi o Código Florestal, desfigurado há dois anos, que anistiou os desmatamentos irregulares. Agora, querem legalizar o esbulho de terras indígenas.

Na tentativa de influenciar a opinião pública, os ruralistas usam como fachada os pequenos agricultores. A situação hoje é a seguinte: a definição de áreas de conservação ambiental e a demarcação de terras indígenas e de quilombolas estão paradas. Multiplicaram-se os projetos de lei e de emendas constitucionais que lhes são hostis.

Um exemplo gritante é a proposta de emenda constitucional (PEC) 215, que quer tirar do executivo e passar para o Congresso a demarcação das terras indígenas, o que na prática significa o fim das demarcações.

Por toda esta semana, índios e não índios protestam contra o desmantelamento do emblemático capítulo constitucional referente ao direito indígena. Mas esse não é só um ataque aos índios. É todo nosso projeto de futuro que está em jogo.

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, 70, antropóloga, é membro da Academia Brasileira de Ciências e professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e da Universidade de Chicago

Artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 03 de outubro de 2013 –  FOLHA DE S. PAULO – OPINIÃO   – e comentado por leitores –  FOLHA DE S. PAULO – PAINEL DO LEITOR

Leitor lembra decisão do STF sobre demarcação de terras indígenas

A demarcação de terras indígenas tornou-se tarefa simples de ser cumprida após o julgamento sobre a reserva Raposa/Serra do Sol pelo STF, que estabeleceu critérios a serem obedecidos naquele precedente e nas futuras questões fundiárias envolvendo interesses indígenas.

Tudo muito fácil ao se adotar a “teoria do fato indígena”, e não a “teoria do indigenato”. São terras indígenas apenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição de 1988, estavam ocupadas por indígenas. Ressalva-se apenas a hipótese de renitente esbulho devidamente comprovado. Do contrário, teríamos que devolver o Brasil inteiro aos índios.

TALES CASTELO BRANCO, advogado (São Paulo, SP)

Brilhante o artigo “A Constituição em perigo”, da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (Tendências/Debates, 3/10). É fundamental a demarcação imediata das terras indígenas, já que muitos processos se arrastam há anos. As manifestações dos índios e de seus apoiadores demonstram a decisão desses povos de fazer valer seus direitos, ameaçados se a decisão sobre as demarcações for tomada pelo Legislativo, onde a bancada ruralista e outras bancadas conservadoras demonstram a vontade de avançar sobre essas terras.

VILMA AMARO, do Grupo Tortura Nunca Mais (São Paulo, SP)

Para Manuela Carneiro da Cunha, as bancadas ruralista e mineradora são contra os interesses dos índios por pretenderem transferir do Executivo para o Legislativo a competência sobre a demarcação de reservas indígenas e quilombolas. Mas os argumentos da antropóloga nos levam a suspeitar de que ela está defendendo interesses muito superiores aos de nossos desafortunados conterrâneos, que já possuem 13% do território nacional, com áreas contendo valiosas reservas de minérios estratégicos.

PEDRO UBIRATAN MACHADO DE CAMPOS, sociólogo (Campinas, SP)

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