A Constituição brasileira deixa claro: pertencem aos índios “as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las”. Princípio que nenhuma pessoa civilizada contesta. De onde surgiu, então, esta confusão que anda assustando a sociedade?
É simples explicar: ocorre que certos grupos indígenas estão, com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai), reivindicando áreas de terra que, há tempos, deixaram de ocupar. Colonizados pelos produtores rurais, tais espaços agrários ajudaram a edificar a nação brasileira. Em alguns casos, a exploração agropecuária ultrapassa 90 anos, com imóveis registrados no cartório de imóveis. Posse legítima, zero de terra devoluta.
Situada em Mato Grosso do Sul, assim se configura a Fazenda Buriti, palco do infeliz conflito que matou o terena Oziel Gabriel. Mantida desde 1927 pela família Bacha, suas cercanias foram invadidas para forçar a conclusão do processo demarcatório, visando a transformá-la em reserva indígena.
O tiroteio ocorreu em meio ao cumprimento do mandado de reintegração de posse, ato judicial contra o qual os indígenas resistiram com violência. Tragédia anunciada. Em todo o sudoeste de Mato Grosso do Sul existem, há tempos, dezenas de propriedades rurais ameaçadas por essa inusitada categoria de sem-terras com penachos coloridos. O miolo da encrenca afeta 3 milhões de hectares, exatamente o mesmo tamanho da área cultivada no Estado, onde labutam 100 mil famílias rurais.
O exagero da “causa indígena” assombra o bom senso. O acirramento dos ânimos resulta da demora do governo federal em resolver a questão. As reservas indígenas já existentes no território sul-mato-grossense somam 613 mil hectares, abrigando 31 mil remanescentes das tribos originais. Alguns defendem ser necessário aumentar esse domínio. Inexistem, porém, áreas disponíveis, exceto aquelas dedicadas historicamente aos cultivos de soja, milho e algodão, ou à pecuária, de excelente nível. Há proprietários que aceitariam, se indenizados, entregar parte das terras, mas o governo sempre afirmou ser impossível pagar.
Entregar de graça ninguém topa. Enquanto nada se decidia, o caldo da encrenca engrossava e se contaminava ideologicamente. Os indígenas invasores de terras se articulam com vários movimentos, todos próximos da chamada Via Campesina, uma organização de natureza anticapitalista, que propõe uma espécie de regresso às origens comunitárias da civilização. Gostam de desafiar autoridades, desprezam o regime democrático, bancam os salvadores messiânicos da pureza humana.
No fundo, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) que comanda essa jornada, aliado, no caso, ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a outras entidades que dizem representar os “povos excluídos”. Tal conexão, com ramificações internacionais, destinada a “libertar os oprimidos”, se espraia pelo Brasil, fazendo do “ruralista” sua vítima.
Em Mato Grosso, entre várias pendengas, existe uma suposta tribo remanescente no Pantanal que deseja o mundo na região do Pirigalo. No Rio Grande do Sul, remanescentes caingangues querem tomar 22 mil hectares de colonos gaúchos próximos de Passo Fundo. No Paraná, invasões se verificam em Guaíra, Terra Roxa, Palotina, Mercedes, Santa Helena e Francisco Alves. Os invasores, conforme denunciou o senador Álvaro Dias (PSDB) na tribuna do Senado, não falam português, mas, sim, guarani e castelhano. Em Santa Catarina, o drama de milhares de agricultores ameaçados de perder suas terras na região de Chapecó e Palhoça foi relatado e documentado pelo senador Luiz Henrique (PMDB).
No Pará, fabricaram-se índios boraris na região de Santarém, mirando 80 mil hectares dentro da Gleba Nova Olinda. Na Bahia, afora aqueles malucos que invadiram um resort, e depois saíram envergonhados, outras etnias desconhecidas esbulham terrenos rurais ocupados há 80 anos em Ilhéus, Borá e Buerarema. Para não falar da história de Paulo Apurinã, o falso índio amazonense, um barrigudo velhaco que posava de líder junto das autoridades. Ponta do iceberg? Nenhum desses conflitos envolve disputa por floresta virgem.
Todos, pelo contrário, recaem sobre terras produtivas, sob a alegação de que seriam, no passado, indígenas. No limite, o raciocínio permite englobar também as praias cariocas, a Avenida Paulista, a Esplanada dos Ministérios, recantos alhures, pois, afinal, tudo pertencia aos índios até o descobrimento. Como, e a partir de quando, se comprova a “ocupação tradicional” das terras pelos remanescentes indígenas? Aqui está o xis da questão.
A legislação exige laudos antropológicos, a cargo da Funai. O procedimento, correto em tese, tem-se desvirtuado ao se utilizar de argumentos suspeitos, pouco científicos, para apontar “vestígios” recentes de ocupação indígena onde era imemorial seu sumiço. Referindo-se a uma querela em Mato Preto, no norte gaúcho, o procurador do Estado, Rodinei Candeia, denunciou o respectivo laudo antropológico como “uma fraude absoluta”. Essa desconfiança sobre a veracidade dos laudos antropológicos levou o governo Dilma a propor que outros órgãos, como a Embrapa e o Incra, também opinassem sobre a matéria.
A prova dos nove, necessária, irritou os indigenistas. Percebe-se que os atuais conflitos indígenas não decorrem de nenhuma guerra de extermínio, ataque à floresta ou prepotência ruralista. Nada disso. Os índios contemporâneos não querem, exceto talvez os da Amazônia, caçar com arco e flecha. Desejam terras para cultivar, pastorear rebanhos, ganhar dinheiro. Estão certos. Errado é continuar tratando índios remanescentes como “almas puras”, inimputáveis perante a lei da sociedade humana. Isso precisa mudar.
Por Xico Graziano* – O Estado de S.Paulo
* Agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]
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