No julgamento da ação popular que impugnava a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal adicionou à parte dispositiva do acórdão 19 cláusulas condicionantes, as quais passariam a disciplinar a demarcação de qualquer terra indígena que, a partir de então, se realizasse no Brasil.
O Supremo, ao analisar a validade da demarcação de uma terra indígena específica, enunciou o regime constitucional do usufruto das terras indígenas em geral. Tal regime compõe-se de regras gerais e abstratas cujo teor, em sua maior parte, não foi debatido no processo e não concernia à solução da controvérsia apreciada. O julgamento de uma ação popular acabou levando ao estabelecimento de um regime jurídico válido para todo o país, e não somente para Raposa Serra do Sol.
Na verdade, o STF prolatou sentença aditiva. Nas decisões aditivas o magistrado cria normatividade. Mas não deve fazê-lo a partir do vazio normativo. A elaboração de norma nova deve servir para suprir uma omissão inconstitucional, concretizar, por meio da edição de um novo comando normativo, o que já constava do texto constitucional de modo embrionário. Para preservar o ato editado pelo legislador, a sentença aditiva procura “repará-lo”, “manipulá-lo”. A decisão aditiva, sem afetar o texto da norma impugnada, amplia seu conteúdo normativo, incluindo algo que o texto da disposição não previa expressamente.
A adoção da técnica decisória de perfil aditivo, no caso da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, não se deu, porém, dentro dos limites prescritos pelo sistema constitucional. As condições adicionadas à parte dispositiva da sentença configuram atuação normativa que não se legitimava pelas circunstâncias particulares ao caso.
Só o descumprimento de um dever de legislar constitucionalmente definido pode autorizar, em razão da supremacia da constitucional, o exercício subsidiário de função normativa pela Corte Constitucional. Não se identifica, porém, no julgamento da ação popular qualquer omissão legislativa inconstitucional que exigisse, em princípio, o exercício de atividade normativa integradora ou corretiva. A referida sentença aditiva foi proferida para inserir no ordenamento complementação normativa que não se apresenta como constitucionalmente obrigatória (rime obbligate). A definição pormenorizada do regime jurídico do usufruto das terras indígenas, respeitados os limites constitucionais, dependia, na verdade, de escolhas dotadas de grande grau de discricionariedade.
No exercício do controle difuso de constitucionalidade, exige-se, ademais, que a decisão aditiva seja necessária ao julgamento da causa. Trata-se de decorrência do princípio dispositivo, o qual outorga à parte interessada a iniciativa do processo. É a parte que deduz a pretensão processual que deseja ver apreciada pelo Poder Judiciário, delimitando seu objeto: o juiz não pode apreciar senão aquilo que lhe foi apresentado pelas partes. É o autor que fixa o objeto litigioso. Ora, se é verdade que o Tribunal pode emitir sentença aditiva não apenas no controle concentrado de constitucionalidade, mas também no controle difuso, não se pode perder de vista a necessidade de respeito ao princípio dispositivo, decorrência processual do princípio da inércia da jurisdição.
Também em decorrência do princípio dispositivo, o juiz fica adstrito, ao julgar a causa, não apenas aos pedidos formulados pelas partes, mas também às respectivas causas de pedir. A sentença proferida no julgamento da Petição 3.388, ao fixar as 19 condicionantes, vai além não apenas do pedido deduzido na ação popular mas também das causas de pedir apresentadas como fundamento do pedido. A violação do princípio dispositivo leva assim à afronta simultânea do princípio do contraditório. O princípio do contraditório consubstancia-se na possibilidade efetiva de as partes agirem em juízo, de se manifestarem, preventiva e tempestivamente, acerca de todas as questões, de fato ou de direito, preliminares ou prejudiciais, de rito ou mérito, que possam influir na decisão judicial. O princípio do contraditório, sob tal ângulo, destina-se a proporcionar às partes um processo justo e leal. A sentença declinada sem a participação efetiva das partes padece de nítido déficit democrático. A discussão do tema controvertido pelas partes, especialmente nos processo de índole subjetiva, constitui exigência indeclinável do processo judicial democrático.
As 19 condicionantes que passaram a integrar a parte dispositiva do acórdão proferido na Petição 3.388, em sua maior parte, não foram objeto de prévio debate entre as partes. Nem autor nem réu puderam contribuir efetivamente para a formação da convicção do Supremo Tribunal Federal a respeito dos relevantes temas veiculados nessas condicionantes. A decisão tomada pelo STF sem a correspondente pretensão processual, portanto, configura sentença extra petita.
A preocupação com a atribuição de maior efetividade às normas constitucionais conduziu o Supremo à gradativa superação de omissões legislativas por meio da produção de sentenças constitucionais aditivas. Porém, a absorção de função tipicamente normativa pela Corte – tal qual se observa a partir da produção de sentenças constitucionais do tipo aditivo – deve ser acompanhada do estabelecimento de standards claros a respeito dos limites dentro dos quais essa competência pode ser legitimamente exercida.
A experiência acumulada pela intensa produção de sentenças aditivas por Cortes Constitucionais na Europa foi acompanhada de uma crescente preocupação com a determinação de limites ao exercício dessa competência. A doutrina europeia, em lição igualmente aplicável ao nosso sistema, consolidou duas condições básicas para que seja considerada legítima a prolação de sentenças aditivas pelo Tribunal Constitucional. Exige-se a existência de omissão legislativa inconstitucional e a identificação de uma solução normativa constitucionalmente obrigatória. A observância de tais condições deve do mesmo modo ser requerida entre nós.
Só há sentido em pensar em uma “judicialização da política” enquanto a atuação judicial que preserve a interação democrática entre os cidadãos, e não como realização pelo Judiciário de tarefas que legitimamente cabem às maiorias. A criação de um marco normativo geral do regime de usufruto das terras indígenas deve emanar preferencialmente do Poder Legislativo, respeitados os limites fixados constitucionalmente. No Congresso Nacional os diversos projetos abrangentes de fixação de marcos normativos do usufruto das terras indígenas devem ser ampla e democraticamente discutidos. O que não pode ocorrer é a fixação de tal regime pelo Judiciário sem que os atores interessados da sociedade (e sequer as partes que integravam a respectiva relação processual) tenham tido a oportunidade de debater as normas que o integram.
Por Cláudio Pereira de Souza Neto e Ademar Borges de Sousa Filho
Cláudio Pereira de Souza Neto é advogado, doutor em Direito Público pela UERJ e professor de Direito Constitucional na UFF UGF.
Ademar Borges de Sousa Filho é advogado, procurador do município de Belo Horizonte e mestrando em Direito na UFF.
Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2013
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