Na região entre os municípios de Minaçu e Colinas do Sul, no norte de Goiás, sete índios da etnia avá-canoeiro estão vivendo no limite da extrema pobreza, marginalizados pela pela desastrosa tutela da Fundação Nacional do Índio (Funai). O caso é ainda mais grave quando se destaca que os indígenas, remanescentes de uma etnia nômade que já contou com mais de 2 mil membros no século passado, possuem uma reserva de 38 mil hectares (mais que o dobro da área de Niterói, no Rio de Janeiro) e, há 16 anos, são os presumidos destinatários de royalties milionários pagos pelas concessionárias da usina hidrelétrica de Serra da Mesa, situada parcialmente em suas terras. Todavia, os índios jamais viram a cor – e, menos ainda, os benefícios – desse dinheiro.
Uma oportuna reportagem do jornal O Globo sobre os avá-canoeiros, publicada em 24 de fevereiro (“A tribo invisível”), oferece uma das mais contundentes exposições já feitas sobre a questionável política indigenista brasileira. Embora não tenha sido esta a intenção explícita do jornalista Danilo Fariello, ela escancara de forma insofismável as falácias que se ocultam por trás de uma política determinada muito mais pela agenda de antropólogos, burocratas governamentais e organizações não-governamentais (ONGs) brasileiras e estrangeiras, do que pelos interesses maiores dos próprios indígenas, como fica evidenciado no drama dos avá-canoeiros.
Desde 1996, com a construção da usina de Serra da Mesa, cujo reservatório ocupa cerca de 3 mil hectares da área delimitada para a tribo, as concessionárias Furnas Centrais Elétricas e CPFL Energia passaram a creditar mensalmente um valor equivalente a 2% dos royalties pagos aos seis municípios que tiveram terras inundadas pelo lago do reservatório (Colinas do Sul, Minaçu, Niquelândia, Uruaçu, Campinaçu e Campinorte). Estes recursos, num montante de R$ 6,9 milhões até agora, são administrados pela Funai, com a assistência do Ministério Público Federal, até que os próprios indígenas sejam considerados aptos a administrá-los diretamente.
Todavia, embora sejam nominalmente os índios mais ricos do Brasil, em termos per capita, tão cedo, os avá-canoeiros não deverão assumir a administração desses recursos milionários, a julgar pelas condições deploráveis da comunidade e pelas dificuldades da própria Funai para demonstrar a destinação desses recursos – que, em circunstâncias normais, seriam mais que suficientes para dar a um grupo tão pequeno um padrão de vida e perspectivas de futuro incomparavelmente superiores aos atualmente vivenciados por eles.
Os membros da comunidade são: Matxa, 73 anos, a matriaca do grupo; Nakwatxa, 63; Iawi, 53; Tuia, 43; Thrumak, 26; Niwatima, 24; Kapitomy’i, 26 (da etnia tapirapé, que se casou com Niwatima); e Paxeo, 1, filho de Kapitomy’i e Niwatima.
Deles, só Niwatima sabe ler e seu irmão Thrumak tem noções de Matemática, aprendidas no convívio com os não índios. Segundo Furnas, em 2001, foi assinado um convênio com a Universidade Federal de Goiás, para que professores ensinassem os índios, mas o projeto fracassou, pela ausência de “progressos” dos indígenas.
Tal fato equivale a uma confissão de fracasso de toda uma política, pois é inconcebível que, com os recursos disponíveis dos royalties, o Estado brasileiro não tenha conseguido educar adequadamente dois adultos e duas crianças (tarefa que a maioria esmagadora das famílias brasileiras encara com muito menos meios), em um contexto que lhes permitam expressar-se em sua língua nativa e em português e com todas as condições para a preservação dos seus elementos culturais, mas visando prepará-los para uma inevitável convivência com os não índios – o que, aliás, deveria ser o objetivo último de uma política indigenista baseada em critérios humanísticos e nos interesses maiores dos indígenas.
A persistir esse quadro, é bastante improvável que, algum dia, os avá-canoeiros poderão vir a ser emancipados da tutela da Funai, que deverá continuar “administrando” os vultosos recursos financeiros destinados a eles.
Outra absurda manifestação dos descaminhos que envolvem os avá-canoeiros é o fato de que a Funai não conseguiu encontrar os relatórios dos balanços do convênio, sem os quais, como observa Daniel Fariello, “a avaliação sobre os investimentos ou mesmo a confirmação de que eles chegaram de fato à aldeia fica impossível”. O próprio Fariello registra que, “a olhos nus… fica clara a precariedade na aplicação de diversos programas previstos em 1992, sob responsabilidade da Funai”.
Fariello não foi o único jornalista a ter dificuldades na busca de explicações razoáveis pela Funai. Em setembro último, o Diário do Norte de Goiânia fez uma grande reportagem sobre os avá-canoeiros, destacando, igualmente, o contraste entre os vultosos recursos destinados a eles e a indigência em que vivem. O fecho da matéria foi emblemático: “A reportagem do Diário do Norte fez contato com a Funai em Brasília. O responsável por falar sobre o drama vivido pelos avás estava em viagem internacional a fundação não indicou outro servidor que pudesse dar explicações (Diário do Norte, 10/09/2012).
A reportagem do Diário explicita o surrealismo do tratamento dado aos indígenas pelos seus tutores da Funai. Segundo os termos do convênio em vigor, assinado em maio de 2012, cabe às concessionárias arcar com os custos das seguintes ações, sob a coordenação e execução da Funai: Proteção e Vigilância da Terra Indígena; Meio Ambiente e Etnodesenvolvimento; Obras e Infraestrutura e Apoio Técnico Operacional e Administrativo; Atendimento Médico e Odontológico; e Educação e Memória. Este último prevê a construção de um Centro Técnico e Cultural Avá-canoeiro, em Minaçu, que deverá ser edificado em um terreno de 15 mil metros quadrados doado por Furnas.
Evidentemente, com tantos programas – e, consequentemente, estruturas burocráticas para administrar cada um deles -, não admira que sobre tão pouco dinheiro para os indígenas, mesmo sendo apenas sete pessoas. Diante deste quadro deplorável, gastar dinheiro na construção de um “centro técnico e cultural avá-canoeiro” chega a soar como um escárnio.
Ouvido pelo Globo, o antropólogo Cristhian Teófilo da Silva, da Universidade de Brasília (UnB), que defendeu uma tese de doutorado sobre os avá-canoeiros, disparou: “Fazer das quatro pessoas [sic] que restaram de uma tribo, objeto de uma proteção indigenista com verbas milionárias, é uma forma bizarra de preservação e até uma forma de violência, porque desconsidera aspectos importantes da vida deles. Essa sociedade, que vive em situação de cativeiro, passou a ser dirigida por tutores.”
Certamente, refletindo as ideias de certos antropólogos, Fariello escreve um parágrafo quase inacreditável, que sintetiza a condição deplorável dos avá-canoeiros e expõe a visão misantrópica de grande parte dos profissionais que lidam com os indígenas brasileiros, aos quais pretendem manter “preservados” em sua suposta pureza cultural:
As cestas básicas e a perda de tradições inibiram os índios de matar a fome com hábitos alimentares antes tradicionais. Niwatima e Iawi, por exemplo, comem atualmente morcegos e tatus – pratos comuns na comunidade até o contato com o branco – com a mesma frequência que um cidadão de classe média come lagosta no Brasil, ou seja, raramente. E, neste caso, não é por falta de oferta, uma vez que morcegos enfileiram-se no teto da cabana de alvenaria de um cômodo, onde os moradores espalham-se por suas redes.
Ou seja, além de manter os “índios milionários” vivendo numa cabana de alvenaria de um cômodo – que não dispõe de instalações de água e sanitárias, nem de eletricidade – e dependentes de cestas básicas, ainda se ouvem lamentos de que eles tenham deixado de lado a sua dieta de quirópteros (talvez, se a mantivessem, a necessidade das cestas básicas seria reduzida).
Devido à má administração da Funai, os índios chegaram a “mendigar por cestas básicas”, nas vizinhanças de sua reserva. “Eles passaram fome com dinheiro em caixa”, resumiu Egipson Correia, técnico indigenista da Funai que trabalha na área.
A tragédia dos avá-canoeiros documenta de forma candente a necessidade urgente de uma drástica revisão nas diretrizes fundamentais da política indigenista brasileira. Definitivamente, a sociedade brasileira precisa redefinir em conjunto o tratamento que deve ser conferido aos seus indígenas, cujos destinos não podem continuar sendo definidos pelas motivações ideológicas de certos antropólogos engajados em uma agenda fortemente influenciada pelas ONGs que integram o aparato indigenista internacional – cujo objetivo último é instrumentalizar politicamente a causa indígena como parte de uma campanha de “guerra irregular” contra o Brasil, na qual as grandes terras indígenas não representam mais que obstáculos ao pleno desenvolvimento do território nacional.
O País do marechal Cândido Rondon, dos irmãos Villas-Bôas e de numerosos outros humanistas envolvidos com os problemas indígenas, e no qual as pesquisas genéticas mostram que 28% da população descendem de indígenas pela linhagem materna, tem todas as condições para elaborar e implementar uma política digna dos mais elevados valores humanos, que não almeje tão-somente manter os indígenas em zoológicos humanos, em um utópico isolamento cultural.
Para tanto, o Estado brasileiro precisa recuperar a soberania plena sobre a formulação da política setorial, hoje sequestrada pelo aparato indigenista internacional. Dois passos fundamentais para isto são a retomada da Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), que limita consideravelmente a capacidade de intervenções do aparato indigenista, e a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 215/2000, que transfere para o Congresso a atribuição final da demarcação de novas terras indígenas.
FONTE: Alerta científico e Ambiental – Alerta Científico e Ambiental é uma publicação da Capax Dei Editora Ltda. Rua México, 31, s. 202, CEP 20031-144, Rio de Janeiro-RJ; telefax 0xx-21-2532-4086; www.alerta.inf.br; [email protected] – Conselho editorial: Geraldo Luís Lino, Lorenzo Carrasco e Silvia Palacios.
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