Mapa etno-histórico dos índios brasileiros, que mostra deslocamentos, ocupações e línguas desde o século 16, passa a integrar programa Memória do Mundo, da Unesco. O acervo pertence ao Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém

Em 1943, o etnólogo alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendajú produziu documento que se tornou referência no estudo das etnias indígenas no país, com o nome de Mapa etno-histórico do Brazil e regiões adjacentes. Pertencente ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, o material agora é parte integrante do programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Além de reconhecer a importância do mapa, o projeto facilita a preservação.

“O documento permite visualizar de maneira clara e precisa a imensa diversidade social e linguística do país, demonstrando, além das localizações dos povos indígenas em todos os estados brasileiros, os seus deslocamentos desde o século 16”, explica a coordenadora de Informação e Documentação do Museu Emílio Goeldi, Aldeídes Camarinha. No mapa produzido por Nimuendajú, os dialetos indígenas são classificados em 40 famílias linguísticas.

O mapa entrou para o programa da Unesco por meio de candidatura. A cada ano, desde 2007, uma série de documentos brasileiros são inscritos para integrar o Memória do Mundo. “O museu sempre quis dar maior reconhecimento ao material, um mapa manuscrito, normografado, colorido e produzido em grande formato. Lembro-me de que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o reeditou nos anos 1980”, conta Camarinha.

Para Ruben Caixeta, coordenador do programa de pós-graduação em antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é difícil mensurar a importância da obra de Nimuendajú, tão grande foi o impacto dela no campo acadêmico (em especial na área da etnologia) e nos processos administrativos para regularização de terras indígenas (que lançaram mão do mapa para atestar e demonstrar a longa ocupação dos territórios por diferentes grupos étnicos). “Gigantesco e abrangente foi o banco de dados disponibilizado sobre a distribuição no espaço e no tempo das tribos indígenas (e suas respectivas línguas) no Brasil e nos países vizinhos”, diz.

A nominação no programa não implica nenhum compromisso da Unesco em destinação de recursos financeiros ou de outra natureza ao museu. “A instituição ganha a responsabilidade de preservação do documento e a sua disponibilização para o acesso ao público pesquisador. Logicamente, observadas as limitações que visem à sua preservação e segurança”, acrescenta Camarinha.

Neste mês, o Museu Goeldi recebeu o diploma pela nominação. Atualmente, o mapa está em processo de restauração. A partir de julho, ele deverá estar disponível para apreciação do público. Na edição 2012 do Memória do Mundo, também foram nominados o Arquivo Herbert de Souza (1952-2003); o atlas e mapa do cartógrafo Miguel Antônio Ciera (1758); a Coleção Carlos Gomes do Museu Imperial (1855-1942); a coleção de livros do tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia (1543-1818); e o Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto (1711-1889), entre outros.

População

Dados de pesquisa realizada em 2010 pelo IBGE indicam que há 896,6 mil índios vivendo em território nacional. Eles estariam divididos em 305 etnias e falariam 274 línguas. Comparando com o primeiro levantamento do gênero, realizado em 1991, o crescimento populacional foi de 205%.

Para o antropólogo Ruben Caixeta, a realidade indígena está mais complexa hoje porque muitos índios vivem fora de suas comunidades, grande parte deles em centros urbanos. “Por outro lado, há um intenso movimento de ressurgimento étnico, isto é, comunidades que antes não se consideravam indígenas (e sim caboclas ou camponesas), hoje estão reconstruindo suas histórias, sua relação com uma territorialidade e com práticas culturais específicas ao mundo indígena”, analisa o especialista.

Na opinião do pesquisador, isso só se tornou possível porque o preconceito diminuiu. “Há posições e órgãos menos desfavoráveis aos índios, daí todo esse movimento de afirmação e valorização da condição indígena por parte da população mais pobre e pelos camponeses no Brasil. Além disso, a taxa de natalidade indígena cresceu enormemente nos últimos anos.” Mesmo assim, o caminho ainda é longo. “O caso atual dos índios guarani e caiová, sobretudo no Mato Grosso do Sul, é um exemplo eloquente de que há um racismo e uma violência ostensivos contra os índios.”

Perfil

Homem com caminho próprio

Nimuendajú significa “homem que abriu seu próprio caminho”. O alemão Curt Unckel se naturalizou em 1922 como Curt Nimuendajú, nome dado de “presente” pela tribo dos guarani-ñandeva. Nascido em Iena, em 17 de abril de 1883, o etnólogo, antropólogo e linguista passou quatro décadas entre os índios brasileiros. Chegou a São Paulo em 1903. Ao partir para a Região Norte do país, onde passou a residir, estudou os povos guarani e caingangue. Na segunda década do século 20, começou a publicar seus primeiros trabalhos.

Sua obra inclui artigos publicados em todo o mundo, livros, diários de viagens, fotos e estudos por Amazônia, Ilha de Marajó, Pará e Tocantins, entre outros lugares. “Importante lembrar que o trabalho de Nimuendajú não é somente quantitativo ou demográfico, mas um apurado estudo sobre a organização social e a cosmologia indígena”, afirma Ruben Caixeta. Além do Museu Goeldi, o legado de Nimuendajú está conservado no Museu Nacional do Rio de Janeiro e em instituições da Alemanha e e da Suécia. Ele morreu em 10 de dezembro de 1945, entre os índios tucunas, no norte do Amazonas. O etnólogo também dá nome a uma biblioteca digital (http://biblio.etnolinguistica.org), que reúne artigos e livros raros sobre línguas e culturas indígenas sul-americanas.

Para saber mais

Duas décadas de preservação

O programa Memória do Mundo está completando 20 anos. No Brasil, a iniciativa da Unesco para identificar e preservar documentos e arquivos de grande valor histórico se tornou ativa a partir de 2007. A Carta de Pero Vaz de Caminha foi o primeiro documento em língua portuguesa a ser incluído no programa. Arquivos dos escritores João Guimarães Rosa e Machado de Assis; do arquiteto Oscar Niemeyer; do ex-presidente Getulio Vargas; além da Lei Áurea e de manuscritos do maestro Carlos Gomes, também integram o programa.

Por: Mariana Peixoto
Fonte: Correio Braziliense

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