Cem anos após o fim do primeiro ciclo econômico da borracha (1879-1912), cerca de 40 seringueiros amazonenses fugiram da rotina da produção na floresta e percorreram longas distâncias em barcos para conhecer, em novembro, as instalações da Neotec – fábrica de pneus para moto e bicicleta do grupo Levorin, inaugurada neste ano nas proximidades de Manaus. O cheiro forte da matéria-prima vegetal, recém-chegada em fardos após beneficiamento intermediário, exalava no ambiente com máquinas modernas de grande porte. Na linha de montagem, os extrativistas percebiam a conexão entre o que sangravam nas árvores e o produto final vendido para a mobilidade nas ruas das cidades.
A visita, incomum na relação indústria-fornecedor nas atividades florestais, foi sintomática, indicativa de um novo modelo de desenvolvimento baseado na estruturação de cadeias produtivas locais, que se expande no rastro de subsídios e garantias de preço e suprimento visando à retomada desta que foi uma das principais fontes de riqueza do país.
“O mercado de bicicletas sofre transformações, surgem novos apelos e a borracha da Amazônia pode ser diferencial para um novo perfil de consumidores”, diz o diretor de suprimentos, Leonardo Levorin. A empresa tem matriz há 70 anos em São Paulo, onde se instalou para produzir correias para automóveis. Na acirrada concorrência com chineses, indianos e indonésios, a opção por Manaus se explica pelos incentivos fiscais da Zona Franca e pela proximidade da matéria-prima e de fabricantes de motocicletas que abastecem 30% do mercado brasileiro.
Após investir R$ 117 milhões, a indústria planeja produzir 14 mil toneladas de pneus para veículos duas rodas em 2013, absorvendo duas mil toneladas de látex nativo da Amazônia a partir de um acordo com governo estadual para o estabelecimento de preços justos, sem a pressão de praxe para a redução de custos no insumo, com reflexos na renda local. A expectativa é, até 2014, a demanda pela matéria-prima nativa dobrar, fixando o trabalhador que hoje deixa a floresta em busca de alternativas na metrópole. “Quem está feliz não desmata”, diz Levorin, lembrando que o látex natural tem vantagens importantes quanto à elasticidade e resistência em relação à borracha sintética oriunda do petróleo.
O aproveitamento de seringueiras nativas, e não plantadas como ocorrem em outras regiões do país, tem o poder de desenvolver economias locais em consórcio com outras culturas extrativistas. “O produto, só obtido quando se mantém a floresta em pé, é o carro-chefe no sustento de muitas comunidades”, diz Adolfo Saunier, tesoureiro da cooperativa de seringueiros do município de Itacoatiara (AM) e um dos participantes da visita à indústria. Ao fim da experiência na indústria ao lado dos pneus prontos para uso nos veículos, produtores manifestaram a vontade de voltar a produzir borracha como antes, só que agora dentro de uma realidade diferente de quando seus avós – muitos deles retirantes nordestinos que migraram para tentar a sorte na Amazônia – foram submetidos a condições de trabalho insalubres, análogas à escravidão.
Leonardo Levorin, da Levorin: “Borracha da Amazônia pode ser diferencial para um novo perfil de consumidores”
Duas mil famílias em 18 municípios se integram ao esforço por ressuscitar pelo menos em parte o prestígio da borracha. “Mobilizados nas cooperativas, alcançamos ganhos antes exclusivos dos atravessadores”, diz Saunier. Na rotina diária entre 5h e 12h, cada seringueiro extrai látex em média de 200 árvores e prepara o material a ser prensado e levado para beneficiamento, podendo ganhar R$ 6 mil por safra, sem contar a receita com a coleta de castanha e a produção de farinha de mandioca. Da cidade de Itacoatiara, 20 minutos de lancha levam até a comunidade São João do Carão, na margem oposta do rio Amazonas. Lá os produtores da cooperativa exploraram a borracha que é processada para fornecimento à indústria de pneus e faturam colhendo o cacau consorciado com a floresta mantida conservada, rica em árvores frutíferas como bacaba, buriti e taperebá. “O projeto agora é se abrir para o turismo”, diz Saunier, orgulhoso pela sala digital que está sendo construída para facilitar o acesso dos extrativistas ao mundo exterior e receber visitantes interessados em conhecer a produção nativa que ainda enfrenta diversos obstáculos, como problemas de comercialização e de logística.
Um fornecedor gaúcho da marca internacional Puma chegou a encomendar à cooperativa duas toneladas de uma borracha especial para tênis pelo dobro do valor de mercado, mas desistiu do negócio quando percebeu que o frete custaria mais caro que o próprio produto. Devido a essas questões, estima-se que apenas 10% do potencial produtivo de borracha no Estado seja explorado. “Para reverter o quadro, a locomotiva é o beneficiamento local, com a interiorização do desenvolvimento”, afirma Valdelino Cavalcante, presidente da Agência de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas. Nos últimos três anos, duas usinas foram construídas em Iranduba e Manicoré, com investimento privado de R$ 10 milhões, para transformar a borracha bruta entregue pelos seringueiros em Granulado Escuro Brasileiro (GEB), a matéria-prima do pneu. O ciclo é fechado com o fornecimento aos fabricantes de duas rodas em Manaus, setor que representa 21% do faturamento total polo industrial, de US$ 41 bilhões, em 2011.
O modelo se sustenta por meio de subsídios e incentivos. O governo estadual paga ao seringueiro um adicional de R$ 1 por quilo de borracha comercializada, além da diferença que é coberta pela Companhia Nacional de Abastecimento em relação ao preço mínimo, de R$ 3,98. Há subsídios municipais de R$ 0,30 a R$ 0,50. No total, o produtor recebe R$ 5,20 por quilo de borracha, cinco vezes o valor de 2003, quando a maior parte do produto se destinava ao Acre, para comercialização junto à Pirelli, e ao Pará, onde era beneficiado para a Michellin. “Só 40% do produto ficava no Estado do Amazonas, que agora absorve toda a produção, de 1,1 mil toneladas neste ano”, diz Cavalcante.
O arranjo inclui a liberação de microcrédito (R$ 1,7 mil por seringueiro) para compra de ferramentas para extração da borracha, abertura de estradas e até compra de barcos para escoar a produção com menor dependência dos atravessadores. Castanha-do-Brasil, frutos amazônicos, pesca e produção agrícola familiar complementam a renda dos seringueiros.
O jornalista viajou a convite da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas
Por: Sérgio Adeodato
Fonte: Valor Econômico
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