A população indígena no Brasil aumentou segundo o Censo Populacional 2010, do IBGE. Os resultados já eram esperados pela presidenta da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marta Maria do Amaral Azevedo. Ela é cientista social e demógrafa especializada em população indígena (está licenciada das atividades de pesquisadora e docente do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp).Segundo Marta, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aperfeiçoou a logística de coleta de dados e a metodologia de apuração de informações. Além disso, houve, desde a Constituição de 1988, melhoras nas políticas indigenistas que resultaram em aumento da qualidade de vida e menor mortalidade.
Apesar do avanço, a presidenta da Funai aponta para os riscos das disputas fundiárias e de intolerância com indígenas. A seguir os principais trechos de entrevista exclusiva que concedeu à Agência Brasil, a primeira desde que tomou posse (em abril passado).
Agência Brasil – O Censo registrou aumento da população indígena. Esse dado a surpreendeu?
Marta Azevedo – O que aconteceu nesse Censo de 2010 é que, além de perguntar raça cor da pele para todas as pessoas, se perguntou ao indígena a qual etnia pertence e quais línguas fala. Não tem nada novo, o fenômeno se deve a uma recuperação demográfica dos povos indígenas no Brasil.
ABr – Recuperação?
Marta – Houve de fato uma recuperação demográfica desde os anos 1960-1970, sendo que a gente viu isso no Censo de 1991. Antes disso, não tem como medir. Em geral, toda população humana, quando há perdas muito sérias, ocorre uma recuperação demográfica. No Brasil, as estimativas da população do século 16 variam de 3 milhões a 7 milhões, não existe exatamente um trabalho de demografia histórica. Mas, baseado em trabalhos de outras regiões da América Latina, faz essa estimativa, e eram mais de mil povos e, com certeza, mais de mil línguas faladas. Quanto ao aumento do número de etnias, muitos antropólogos têm escrito sobre isso a respeito de fenômenos de auto-identificação de pessoas que pertencem a um determinado povo, mas que nos últimos anos passaram a não se declarar como pertencendo a esse povo e justamente por todo esse fenômeno de recuperação demográfica e de valorização da identidade étnica. São pessoas que estavam se declarando como caboclos, pardos, e que passam a se declarar como povos indígenas específicos. Tem também, ainda, um outro fenômeno, é a declaração de etnias que os antropólogos consideravam antigamente como se fosse um subgrupo.
ABr – Também melhorou a cobertura do Censo?
Marta – Melhorou muito. Em 2007, criou-se um grupo de trabalho entre o IBGE e a Funai juntamente com o apoio da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), e de outras instituições para fazer coincidir as malhas cartográficas das terras indígenas com os setores censitários. Por isso que os resultados saíram com a lista das terras indígenas e mapas. Está tudo disponibilizado também no site do IBGE [ver link com:http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf; http://www.ibge.gov.br/indigenas/index.htm]
ABr – A demarcação de terras indígenas depois da Constituição de 1998 ajudou?
Marta – Olha, com certeza a terra politicamente demarcada, assegurada e efetivamente disposta a esses povos indígenas traz uma melhor qualidade de vida para essa população, traz uma segurança, a possibilidade de um futuro. O serviço de atendimento à saúde aos povos indígenas, que vem melhorando nos últimos anos, impacta também os indicadores de mortalidade infantil, que vem caindo.
ABr – Mas se compararmos a situação da população não indígena com população indígena, o atendimento à saúde, assim como a escolaridade, é muito desfavorável aos indígenas…
Marta – As populações negra e indígena são as que têm piores indicadores de qualidade de vida Isso tudo tem uma série de fatores que vão afetando e, com certeza, um dos quais é a segurança da terra.
ABr – E a questão do ensino indígena?
Marta – Esse direito a ter uma escola específica e diferenciada na sua própria aldeia, de ter professor que fala sua língua é uma coisa muito recente, dos anos 90 para cá. Se olharmos o perfil etário e o número de matrículas no Censo Escolar, que contabiliza todo ano as escolas indígenas, número de matrículas, língua de ensino…, veremos com certeza tem muita criança de 1ª a 4ª série, e depois vai diminuindo bastante de 5ª a 8ª. Pouca gente com acesso a segunda parte do ensino fundamental, pouquíssima gente com acesso ao ensino médio, e menos acesso ao ensino superior. A gente tem que garantir cada vez mais esse acesso. Acho que está aumentando o número de escolas de ensino médio nas terras indígenas, mas a qualidade deixa a desejar.
ABr – Por que deixa a desejar?
Marta – Muitas vezes falta formação para os técnicos das secretarias estaduais e municipais de educação, porque muitas vezes a escola indígena é longe, distante. A própria secretaria estadual de educação não tem como ir até lá para fazer acompanhamento, não tem uma equipe para fazer esse acompanhamento.
ABr – Falta professor qualificado?
Marta – Os professores indígenas têm sido formados nos cursos de magistérios indígenas. Isso tem sido feito pelos estados com o apoio do Ministério da Educação e com participação das universidades. Muitas universidades estão envolvidas nesse processo de formação dos professores, mas ainda falta muito. A população está crescente e a cada ano tem que abrir novas escolas.
ABr – Voltando aos Censo. O que explica o aumento de índios em São Paulo?
Marta – Em São Paulo, mais de 90% da população autodeclarada indígena está fora das terras indígenas. O que isso quer dizer? São indígenas que se autodeclararam, mas que estão vivendo nas cidades, ou então em terras indígenas ainda a serem demarcadas.
ABr – São indígenas que migraram?
Marta – Até o Censo de 2000, muitos eram pessoas de outros estados, principalmente do Nordeste. Mas a gente não sabe qual é o perfil dessa população, não tem ainda estudos exatos apurados sobre o perfil dessa população. Quem são essas pessoas que se autodeclaram indígenas, que não reconhecem uma etnia? Foi a primeira vez que se perguntou sobre a etnia.
ABr – De alguma forma esses dados ajudam a fixar ou aperfeiçoar as políticas da Funai? Quais as prioridades?
Marta – As prioridades da Funai continuam sendo as mesmas: promover e defender os direitos dos indígenas no Brasil, ou seja, tem a ver com demarcação de terra, identificação de marcação de terra, proteção territorial, fiscalização, manejo ambiental dos territórios, tem a ver com uma discussão com os povos indígenas que estão nas terras indígenas já demarcadas ou em processo de demarcação. O que vão fazer com essa terra? Quais são as alternativas para o futuro dessa população nessas terras? Acho que a grande virada da Funai, a grande mudança que houve nos últimos anos é que a Funai não tem mais aquela visão que se tinha de assistencialista.
ABr – Por trás dessa visão assistencialista, havia uma ideia de integrar as culturas indígenas à cultura central, digamos assim. Estamos passando por um momento de conflitos em várias áreas. É por conta desse choque de paradigmas?
Marta – Acho que tem diferentes tipos de conflitos a colocar. Acho que a mudança de paradigmas que ocorreu no final dos anos 1980 com a Constituição, mas também em termos de visão da sociedade brasileira, é que os povos indígenas são dessa parte do território da América do Sul, não são uma categoria transitória. Os povos indígenas estão aqui, fazem parte da sociedade brasileira, patrimônio cultural do Brasil que é um país multiétnico. Nos anos 1970, era muito comum a maior parte das pessoas – inclusive professores da USP [Universidade de São Paulo], onde eu cursei Ciências Sociais – dizer que os povos indígenas estavam fadados ao desaparecimento. Até os anos 1970, demarcar uma terra indígena era demarcar uma aldeia. E demarcar uma aldeia ou pedaço de terra para uma determinada população significava uma reserva com índios que falam a mesma língua e que moram perto podem ser colocados ali dentro. A ideia era demarcar aldeia e não o espaço para reprodução física ou cultural, que é absolutamente fundamental para a sobrevivência dessa população. É muito importante a existência de matas, água, animais, montanhas, de um território culturalmente mais fácil de viver… Não é preciso que se tenha um carro, geladeira ou computador do ano para ser feliz.
ABr – Isso não quer dizer que o índio não possa ter internet wireless…
Marta – Eles têm todo direito de dialogar, de ter computadores, caminhonetes como todo cidadão brasileiro. Mas eles também têm direito de viver de outro jeito, não querendo dizer que são atrasados ou que não seja desenvolvido. A gente escuta muito “aqueles lá da Amazônia ainda estão na Idade da Pedra”. Muito pelo contrário, eles estão muito mais avançados que a gente com outra maneira de viver. Essa discussão que seria muito importante para nós não índios e aprender também o que a nossa sociedade, cultura precisa de fato. Esse paradigma ainda não mudou.
ABr – Essa certa intolerância contra os indígenas e esses conflitos que vimos em pleno século 21 põem por terra que o brasileiro tem como traço cultural a cordialidade?
Marta – Eu tenho certeza que os estrangeiros já perceberam que os brasileiros não são tão cordiais assim, e essas questões de violência no Brasil também estão colocadas com os não indígenas. A gente tem questões de violência nas grandes cidades, uma mortalidade de jovens homens por causas externas muito grande nas cidades. Agora, no ponto de vista de melhoras as relações dos não indígenas com indígenas aqui no Brasil é absolutamente fundamental para a gente implementar aquela lei que manda com que as escolas não indígenas estudem a história dos povos indígenas, que até hoje a gente vê escolas que ficam ensinando para jovens e crianças que os indígenas estão numa oca, que eram preguiçosos. Isso para mim é uma das coisas mais importantes que a gente tem que fazer nesse governo, priorizar a formação das crianças e jovens. Diminuir o preconceito é uma coisa fundamental.
FONTE : AGÊNCIA BRASIL (ABr)
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