Uma das razões que levaram o governo a apostar suas fichas na viabilidade das usinas de São Luiz do Tapajós e de Jatobá seria o fato desses projetos estarem desenhados para ocupar uma região livre de terras indígenas. Com apoio local da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Itaituba, o Valor navegou pelo rio Tapajós, principalmente na área prevista para ficar entre os dois eixos das hidrelétricas. Ali está a aldeia Sawre Muybu, onde vivem 24 famílias que somam aproximadamente 110 índios da etnia munduruku.

Isolada na floresta, às margens do Tapajós, essa aldeia chegou a receber, recentemente, a visita de alguns pesquisadores de empresas de licenciamento contratadas pela Eletrobras. A aldeia está localizada na Floresta Nacional Itaituba 2. Sua extensão está conectada a essa unidade de conservação, mas com o enchimento da barragem de São Luiz, a aldeia Sawre Muybu ficará ilhada pelo lago da usina.

 

“Sabemos que querem tirar a gente da aldeia, mas nós nascemos aqui, somos daqui. Estamos acostumados com a vida que temos. Estamos tentando preservar a nossa cultura. Esse negócio de usina é assustador para nós”, diz Antônio Daice Munduruku, de 24 anos.

A Funai em Itaituba já identificou cinco aldeias dos índios munduruku na região, somando uma população de aproximadamente 500 pessoas. Essas aldeias não têm energia elétrica e o acesso só pode ser feito por meio do rio. As que possuem algum tipo de iluminação, utilizam geradores a diesel.

A aldeia onde Antônio Daice Munduruku vive com seus pais, mulher e três filhos foi criada há sete anos. Um processo de demarcação formal da terra começou em 2008, mas nunca foi concluído pela Funai. Essa situação preocupa os índios da região. Por lei, é proibido fazer aproveitamento energético em terras indígenas demarcadas. Foi esse tipo de situação que levou o governo a suspender, por exemplo, os estudos para implantação da usina de Chacorão, no Alto Tapajós, na fronteira com o Mato Grosso. A usina atingiria diretamente a terra indígena demarcada dos mundurukus naquela região.

“Ninguém nunca mais falou sobre a demarcação de nossa aldeia. Estamos aqui sozinhos, sem proteção. Sabemos que só tem gente poderosa por trás disso, mas se estivermos organizados, podemos impedir essas obras”, diz Antônio Daice. “Temos os nossos irmãos do Alto Tapajós e nossos amigos ribeirinhos. Nós vamos procurá-los. A nossa luta é a deles também.”

A chefe de serviços de monitoramento ambiental e territorial da Funai em Itaituba, Juliana Araújo, afirma que, nas terras demarcadas do Alto Tapajós, onde nasce o rio, vivem cerca de 8 mil índios mundurukus, sem contar a população que já se espalhou nos municípios da região.

“Os índios realmente estão desconfiados de tudo. Se não houver diálogo e clareza, sabemos que eles não vão ficar de fora do assunto. As aldeias locais já avisaram que vão chamar seus irmãos e a situação pode ficar muito difícil”, comenta Juliana. “Eles já estão sentindo os impactos dos garimpos nessa área. Estão usando muito mercúrio e isso está contaminando a água. Já recebemos essa denúncia.”

Uma assembleia com todos os índios da região foi marcada para o fim de agosto, com o propósito de discutir as perspectivas das aldeias por conta da construção das hidrelétricas.

Em Brasília, o governo tem realizado uma série de reuniões com o propósito de regulamentar o Artigo 231 da Constituição Federal, que prevê a exploração de recursos hídricos dentro de reservas indígenas. “No momento, optamos por evitar qualquer problema que se aproxime de terras indígenas. O governo ainda está discutindo a regulamentação do artigo 231″, diz Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. “Temos um grupo de trabalho tocando esse assunto, mas ainda não há nada fechado. Assim que concluirmos uma proposta, ela ainda terá que ser encaminhada para análise do Congresso Nacional.”

Enquanto a regulamentação não sai, o governo tenta avançar paralelamente. Na semana passada, a Advocacia-Geral da União (AGU) publicou uma portaria para permitir que o poder público faça intervenções em áreas demarcadas sem a necessidade de pedir autorização às populações indígenas do local. A portaria se apoiou em salvaguardas institucionais fixadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, quando a corte decidiu sobre o polêmico caso de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

A portaria causou atritos com a Funai, que divulgou nota manifestando contrariedade sobre o teor da decisão. “Entendemos que a medida restringe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente os direitos territoriais, consagrados pela Constituição Federal”, alegou a fundação. O julgamento da petição de Raposa Serra do Sol, diz a Funai, ainda não foi encerrado, tendo em vista a existência de embargos de declaração pendentes de decisão na Corte Suprema. Além disso, segundo a fundação, o Supremo já teria informado que a decisão proferida no caso não tem “efeito vinculante” para os demais processos que envolvem a demarcação de terras indígenas. As reclamações chegaram à AGU, que nesta semana concordou em discutir o assunto.

Essas são questões complexas para o entendimento de Antônio Daice Munduruku, isolado no Médio Tapajós. “Não conseguimos entender direito essas coisas. O que nós queremos é apenas paz e o direito de poder ficar em nossa terra, com a nossa família.”

Fonte: Valor Econômico