Na curva onde o rio divide os Estados do Pará e Mato Grosso, as águas esverdeadas e velozes do Teles Pires escondem um santuário de belezas naturais e um reino místico da cultura indígena. Para o “homem branco”, nada mais é do que a sequência de sete quedas de corredeiras. Entre os povos indígenas, trata-se de um lugar sagrado, que não pode ser mexido. Ali, entre ilhas, pedras e uma mata ainda intocada, eles acreditam que vivem os espíritos de seus antepassados, a mãe dos peixes e da água. “Se for destruído, coisas ruins vão acontecer para o homem branco e para a comunidade indígena”, prevê o cacique João Mairavi Caiabi, que aos 51 anos comanda 206 pessoas da aldeia Cururuzinho.

Segundo ele, algumas dessas maldições já perturbam o dia a dia dos índios: “Temos pessoas com suspeita de tuberculose. Isso nunca aconteceu antes na comunidade. É reflexo das intervenções no rio e na floresta”. Os caiabis moram a alguns quilômetros das corredeiras Sete Quedas, nas margens do rio onde está sendo levantada a Hidrelétrica de Teles Pires, a quarta maior usina em construção no Brasil, com 1.820 megawatts (MW) de potência – energia suficiente para abastecer 5 milhões de habitantes, a maioria do Sudeste.

Na região, também moram os índios da etnia mundurucu, considerados mais arredios, e apiacá, que juntos somam uma população de cerca de 600 índios – alguns deles são acusados de nunca terem ido nas Sete Quedas. A exemplo de outras obras, como Belo Monte (PA), a barragem, de R$ 3,6 bilhões, enfrenta fortes protestos de índios, ambientalistas e do Ministério Público, contrários à expansão das usinas na Amazônia. A preocupação do cacique João é que, só na Bacia do Teles Pires, devem ser construídas mais quatro hidrelétricas, além das duas em andamento (Teles Pires e Colíder). Para tirar os projetos do papel, cerca de 70 mil hectares de floresta dariam lugar aos lagos – isso significa 70 mil campos de futebol.

Embora elevado, o número é bem inferior ao das usinas do passado – a Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, inundou quase três vezes mais para gerar apenas 275 MW. Hoje, diante da preocupação ambiental, quase todas as usinas são a fio d’água, sem grandes áreas de reservatório. Se por um lado reduzem a potência da unidade, por outro diminuem substancialmente o impacto ambiental. Isso não significa, entretanto, impacto zero, especialmente para os indígenas.

Compensação ambiental. O lago de Teles Pires terá 9.500 hectares de área inundada, sendo que 7 mil hectares terão de ser desmatados. Em compensação, a Companhia Hidrelétrica de Teles Pires (CHTP, formada por Neoenergia, Furnas, Eletrosul e Odebrecht), que detém a concessão da usina, terá de pôr em prática 45 programas sociais, ambientais e indígenas, num total de quase meio bilhão de reais (15% do valor total da obra).

Estão sendo criados projetos de monitoramento de clima, água e solo; controle de prevenção de doenças; construção de escolas, unidades de saúde, terminal rodoviário, pontes e a pavimentação de ruas. Há ainda programas de resgate de fauna e flora de toda área impactada, além do monitoramento de algumas espécies em extinção. Não importa se é um grande mamífero ou simplesmente uma borboleta, como a Agrias Claudina, ameaçada no Pará. “Todos precisam ser resgatados e catalogados”, afirma a gerente de Meio Ambiente da CHTP, Maíra Fonseca Moreira Castro.

Mas, numa região com a biodiversidade tão rica como na Amazônia, é praticamente impossível evitar todos os prejuízos. Maíra conta que já foram resgatadas 1.084 espécies diferentes de árvores na área da usina, sendo que 638 delas foram descobertas após os estudos de impacto ambiental. Só de orquídeas são 85.326 espécies diferentes. Tudo isso catalogado e resgatado por 60 pessoas.

O Plano Básico Ambiental (PBA) indígena é tratado a parte. A CHTP desenhou 12 programas com investimentos para atender as 12 aldeias indígenas da área. Mas a proposta está longe de atender aos anseios das lideranças da região, que ainda não aprovaram o documento. “O PBA está muito fraco. Precisamos de projetos melhores na saúde, educação e habitação”, afirma Elenildo Caiabi, um jovem de 25 anos que conhece bem tanto a cultura indígena como a do “homem branco”. Para ele, as aldeias precisam reivindicar seus direitos enquanto a usina está em construção. “Depois vão todos embora e nós ficamos apenas com os prejuízos, sem lugar para caçar e pescar.”

A lista de equipamentos pedidos pelos índios à CHTP é grande – e cara. Inclui caminhonetes importadas, como Mitsubishi, barcos e motores, antenas parabólicas, etc. A justificativa é a localização. Para chegar à aldeia Cururuzinho, no Pará, há duas alternativas. De avião, gasta-se meia hora saindo de Paranaíta, a cidade mais próxima no Estado de Mato Grosso. Mas esse é um meio de transporte apenas para os visitantes. Normalmente, os índios levam cinco horas para chegar à cidade, sendo duas horas de carro e mais três horas de barco.

Modernidades. Na comunidade, cercada de um lado pelo Rio Teles Pires e de outro pela Floresta Amazônica, as casas – algumas retangulares e outras, ovais – ainda são feitas de madeira e cobertas de folhas de palmeiras. No chão, apenas terra batida. A única casa de alvenaria é reservada aos visitantes da aldeia. Mas alguns avanços da cidade já fazem parte da vida dos caiabis. A aldeia tem um orelhão e energia elétrica produzida por gerador, que funciona à noite ou quando alguém precisa usar o computador, por exemplo.

Eles têm fogão a gás, mas quase nunca usam. Preferem o fogão a lenha, improvisado com tijolos e uma chapa, melhor para assar peixes e carne de animais nativos, como jacu, cateto e paca. Alguns alimentos do “homem branco” também integram as refeições dos índios, como arroz, café e açúcar. “Mas preferimos o peixe, a caça e a farinha de mandioca, plantada aqui do lado”, afirma Valdete Caiabi, que aos 25 anos é mãe de cinco filhos. “Dizem que não vai ter nenhum impacto para nós. Mas temos parentes que moram perto de outras hidrelétricas e hoje não têm mais peixe para comer. O rio é o nosso mercado”, diz ela.

Em março, a Justiça suspendeu a licença de instalação da usina, alegando que os índios não haviam sido ouvidos. As obras, na época com 2 mil trabalhadores, ficaram paralisadas por 12 dias. A CHTP teve de alugar avião para levar os trabalhadores para casa durante esse período.

De acordo com a empresa, todas as audiências públicas foram feitas dentro da lei e gravadas. Mas para o procurador da República no Pará, Felício Pontes, pela lei, é o Congresso Nacional que tem de fazer oitivas nas aldeias indígenas e não engenheiros e executivos. Segundo ele, entre Ministério Público Federal e Estadual, há cerca de 11 ações propostas contra a usina de Teles Pires.

“Fizemos várias alterações no projeto para reduzir os impactos ambientais na região. Vamos produzir mais megawatts com menos área alagada e devastada”, afirma o diretor de Sustentabilidade da CHTP, Marcos Azevedo Duarte. As mudanças, no entanto, não seduzem os caiabis: “Queria o rio do jeito que Deus deixou”, diz Valdete.

Renée Pereira, de O Estado de S. Paulo – http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,area-indigena-sagrada-vai-virar-hidreletrica,117902,0.htm