As tensões indígenas que envolvem a construção da hidrelétrica de Belo Monte podem entrar numa fase mais aguda. O acirramento de ânimos dos milhares de índios que habitam o entorno de Altamira (PA) deve-se, basicamente, ao fim de uma “mesada” que as aldeias da região vinham recebendo da empresa Norte Energia, consórcio responsável pela construção da usina no rio Xingu.

Desde setembro de 2010, apurou o Valor, a Norte Energia desembolsa R$ 30 mil por mês para cada uma das 28 aldeias que estão distribuídas em 12 terras indígenas localizadas na área de influência de Belo Monte. Esse dinheiro não é transferido em espécie, mas usado para bancar a aquisição de uma lista de mercadorias apresentada regularmente pelos índios, envolvendo itens como roupas, alimentos, remédios, máquinas e combustível. Ocorre que agora esse repasse está prestes a acabar.

Pelo entendimento firmado entre a Norte Energia e a Fundação Nacional do Índio (Funai), a mesada só será entregue até setembro. Isso porque o recurso faz parte de um “plano emergencial” instituído pela Funai em 2010 para vigorar somente enquanto o Plano Básico Ambiental (PBA) indígena, elaborado pela Norte Energia, não estivesse em operação. Agora que o PBA está pronto, irá substituir a lista de pedidos que, por dois anos, foi apresentada pelos índios.

No lugar da lista, entrará em vigor um conjunto de medidas de apoio e fortalecimento da cultura indígena, prometem a Norte Energia e a Funai. Na prática, significa que, a partir de agora, o índio terá se apoiar em seu próprio modo de produção para garantir a subsistência, sem apoio financeiro direto para bancar a compra de mercadorias. O conflito está armado. Quem reconhece é a própria Funai.

“No dia em que isso acabar, você pode aguardar que vai ter conflito. Não sabemos em que nível vai ser, mas vai ter. Nós vamos atuar para resolver. A Funai está na região para solucionar conflitos”, diz Aloysio Guapindaia, diretor do Departamento de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, fundação que instituiu o programa emergencial.

Ao todo, a mesada indígena de Belo Monte já custou R$ 18 milhões à Norte Energia. “Até setembro, quando será feito o pagamento da última parcela, os repasses somarão R$ 22 milhões”, diz o diretor socioambiental do consórcio, Roberto Camilo da Cruz Oliveira. “Além disso, fizemos o desembolso de outros R$ 17 milhões para melhorar a infraestrutura da Funai.”

A previsão da Norte Energia é de que o PBA indígena entre em execução em julho. A sobreposição do plano com o programa emergencial – que manterá seu pagamento até setembro – tem a intenção de preparar os índios para a “fase de transição”, segundo Oliveira. Essa mudança, no entanto, não deverá ser tão simples.

Segundo Guapindaia, os índios não só chegaram a cobrar a continuidade dos repasses financeiros, como pediram o aumento na cota para R$ 100 mil por mês. Além disso, queriam que o pagamento ocorresse enquanto Belo Monte funcionasse, ou seja, sem prazo para extinção. “Nós explicamos que se tratava de um plano emergencial com começo, meio e fim. Deixamos claro que, quando entrar o PBA, o recurso acaba. Isso gerou uma tensão grande, porque eles queriam colocar esse recurso como uma indenização permanente”, comenta Guapindaia. “Fomos firmes com eles. Os índios já estão convencidos do fim do recurso.”

Pelas regras do licenciamento ambiental, o PBA indígena deveria ter entrado em operação em junho do ano passado, quando o Ibama emitiu a licença de instalação de Belo Monte. Segundo a Funai, no entanto, não foi possível viabilizar o plano, dada a “complexidade das ações envolvidas no projeto e a necessidade de comunicar os índios sobre o que seria feito”. Ainda assim, a Funai deu sinal verde ao Ibama para levar o licenciamento adiante.

Pelos números da fundação, há cerca de 10.000 índios na região de Altamira que serão atingidos pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Nos cálculos da Norte Energia, porém, o contingente é de, aproximadamente, 5.500 índios. “Sabemos que a transição é uma situação delicada, mas apostamos muito no PBA para restabelecer a cultura indígena. O medo deles é deixar de ter atendimento, mas teremos uma equipe preparada para apoiar as ações”, diz Inês Caribé Nunes Marques, gerente de estudos indígenas da empresa.

O consórcio não revela quanto será investido no PBA, plano que agrupa um conjunto de 320 ações divididas em dez programas de apoio a serem executados durante cinco anos. O Valor apurou que as medidas devem custar cerca de R$ 250 milhões à Norte Energia, custo bem superior, portanto, ao desembolso feito até agora.

Os conflitos em torno da mesada paga pelo consórcio já chegaram a envolver até ameaças de morte em Altamira. No fim do ano passado, o representante da Funai na cidade foi acusado pelos índios de privilegiar a entrega de mercadorias para determinadas aldeias e de usar os recursos da Norte Energia em benefício próprio, diz Guapindaia. O funcionário acabou transferido para outra cidade e a fundação decidiu parar com a intermediação dos pedidos apresentados pelos índios.

Hoje, um representante da Norte Energia é quem gerencia a lista de compras e, conforme os critérios estabelecidos, libera ou não a aquisição das mercadorias. “A Funai está na região para solucionar conflitos. Se ela é a causadora, não está ajudando, mas atrapalhando. Temos que ficar de fora para ter a neutralidade para resolver o impasse”, comenta Guapindaia.

A extinção da mesada indígena paga pela Norte Energia põe fim a uma prática assistencialista que, segundo Guapindaia, sempre foi alimentada pela Funai. “A realidade é que a Funai nunca tinha desenvolvido um projeto de sustentabilidade econômica para aquela região. A prática da Funai sempre foi perversa. Se você dá dinheiro e comida, o índio não vai plantar. Nós começamos a cortar isso, trocando essa postura assistencialista por outro contexto.”

A questão agora é convencer o índio. “De fato, fica muito difícil trabalhar com uma aldeia que já está viciada nesse recurso, onde o índio não quer mais plantar, mas vamos assegurar que o índio tenha capacidade de fazer a gestão de sua terra. Vamos criar essa capacidade”, diz Guapindaia. “Eles terão suas atividades econômicas, vão produzir para seu consumo e poderão vender o excedente, tendo dinheiro para comprar o que quiserem. O que não dá é o dinheiro público ser usado para isso.”

Por: André Borges e Daniela Chiaretti
Fonte: Valor Econômico