A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) entregaram ontem (17) uma carta à presidente Dilma Rousseff criticando o texto do novo Código Florestal aprovado na Câmara dos Deputados. O documento é assinado pela presidente da SBPC, Helena Nader, presidente da ABC, Jacob Palis e pelo coordenador do Grupo de Trabalho sobre o Código Florestal e secretário da SBPC, José Antônio Aleixo.
Confira o texto abaixo:
Senhora Presidenta,
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira da Ciência (ABC) estão surpresas com a aprovação do projeto de lei (PL 1876-E/1999) pela Câmara dos Deputados no último dia 25 de abril. Trata-se de um Código Florestal que por não ter incorporado os avanços provenientes do Senado Federal e sugestões baseadas no conhecimento científico e tecnológico, traz sérios retrocessos e riscos para a sociedade brasileira.
A aprovação do referido projeto de lei representa interesses econômicos imediatos de grupos dentro da Câmara dos Deputados, os quais não consideram as peculiaridades de uma região gigantesca como a Amazônia e dos demais biomas do País. Privilegia aqueles que desrespeitaram a legislação ambiental oferecendo anistia pelos ilícitos praticados e, principalmente, não concilia a produção agrícola com a sustentabilidade ambiental.
A reforma do Código Florestal brasileiro, tal como foi processada no Congresso representou a desregulação do setor do agronegócio com sérios riscos para o meio ambiente e para a própria produção agrícola. A proteção de áreas naturais está sendo consideravelmente diminuída. Perde-se assim a oportunidade histórica de colocar o Brasil em posição de vanguarda. A agricultura no Brasil pode e deveria se diferenciar pela conciliação da produção eficiente de alimentos com a sustentabilidade ambiental, sustentabilidade esta que será tema central da Conferência RIO+20 que o Brasil sedia em junho próximo.
Nós, como representantes da comunidade científica brasileira não podemos nos furtar a reafirmar nossas posições, todas baseadas em conhecimento científico e tecnológico, postas à disposição dos parlamentares, a fim de subsidiá-los em suas decisões no processo de tramitação da referida matéria. Assim, respeitosamente, apresentamos a Vossa Excelência subsídios técnico-científicos que justificam a elaboração de marco legal brasileiro, com dispositivos importantes para garantir uma produção agrícola sustentável, com benefícios econômicos, sociais e ambientais.
Embora reconheçamos que ocorreram avanços no substitutivo do Senado com relação ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), promoção de incentivos à preservação, conservação e recuperação ambiental, maior proteção ambiental nas áreas urbanas, inclusão de mangues, apicuns e salgados em área de preservação permanente (APP), construção, em um prazo de três anos, de projetos de lei específicos para cada bioma do País, regulação do uso do fogo, condicionamento de crédito agrícola à regularização ambiental e distinção entre disposições transitórias e permanentes, o Grupo de Trabalho (GT) sobre o Código Florestal, criado pela SBPC e ABC relatou, em correspondência dirigida aos Congressistas e a V. Excia. em 08 de março de 2012, que ainda persistiam sérios problemas os quais deveriam ser corrigidos com base em argumentos científicos conforme o GT explicitava no documento.
Entretanto, o relator do Código Florestal na Câmara dos Deputados, além de não considerar as recomendações do GT da SBPC e ABC, retirou importantes dispositivos do texto aprovado no Senado e, portanto, em alguns dos casos sem possibilidade de veto. Para resgatar, no mínimo, esses pontos, será imprescindível uma nova proposta legal que recupere os pontos perdidos e que não deixe um vazio de proteção em temas sensíveis, tais como os relacionados abaixo:
Alteração do Art. 1º, que suprime os princípios da Lei
A Câmara retirou todos os incisos do Art.1º que explicitavam os princípios pelos quais a lei deve ser regida, tais como o reconhecimento de que as florestas e demais vegetações nativas são bens de interesse comum de todos os habitantes do País e reafirma o compromisso de protegê-las; reconhecimento da importância de se conciliar o uso produtivo da terra com a proteção das florestas a fim de manter os serviços ambientais que as florestas e demais vegetações nativas prestam para a sociedade; criação e mobilização de incentivos jurídicos e econômicos para fomentar a preservação e a recuperação da vegetação nativa e a promoção do modelo de produção sustentável, entre outros. Esse dispositivo garantia o princípio da lei e a intenção de conciliar a atividade produtiva com a conservação das florestas.
Tratamento diferenciado a usos agrícolas pelas comunidades tradicionais e ribeirinhos e definição de pousio
Reafirmamos que os usos agrícolas praticados pelas comunidades tradicionais, ribeirinhas e a pequena propriedade ou posse rural familiar devem ter tratamento diferenciado. Em particular, as áreas de pousio devem ser reconhecidas apenas essas classes, como foram até o presente, sem generalizações.
Além disto, no texto aprovado pela Câmara foi retirado da definição de pousio o tempo máximo e o porcentual da área produtiva que pode ser considerada como prática de interrupção temporária das atividades agrícolas (Art. 3º, inciso XI). Tal definição permitirá considerar áreas florestais em regeneração como áreas agrícolas “em descanso”.
Legalização de novos desmatamentos
Além da mudança na definição de pousio, que permite que novos desmatamentos ocorram sob a nova lei, foi mantido o Art.13o § 5o que possibilita a redução da reserva legal na Amazônia de 80% para 50% em alguns casos. Consideramos que esse dispositivo não é compatível com a política ambiental brasileira, diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para reduzir suas taxas de emissão de gases de efeito estufa e diante do esforço que Universidades e instituições de pesquisa fazem para valorizar a floresta em pé, desenvolvendo alternativas economicamente viáveis de exploração sustentável de recursos madeireiros e não madeireiros.
Nota-se ainda que a Câmara dos Deputados retirou do texto a frase “desde que não impliquem nova supressão de áreas de vegetação nativa” de diversos artigos da lei o que deixa claro que vários mecanismos de flexibilização da legislação poderão levar a novos desmatamentos, que serão considerados legais.
Áreas de Preservação Permanente (APP) nas margens de cursos d’água e nascentes e áreas úmidas
Todas as áreas de preservação permanente nas margens de cursos d’água e nascentes devem ser preservadas e, quando degradadas, devem ter sua vegetação integralmente restaurada. No texto atual, as áreas que devem ser obrigatoriamente recuperadas nas APPs foram reduzidas em 50% para os rios com menos de 10 metros de largura e não foram definidas para rios mais largos.
As APPs de margens de cursos d’água devem continuar a ser demarcadas, como foram até hoje, a partir do nível mais alto da cheia do rio. A substituição do leito maior do rio pelo leito regular para a definição de APP torna vulneráveis amplas áreas úmidas em todo o país, particularmente na Amazônia e no Pantanal. Essas áreas são importantes provedoras de serviços ecossistêmicos, principalmente, protegendo os recursos hídricos e evitando erosões em áreas ribeirinhas e a consequente colmatagem dos rios, razão pela qual são objetos de tratados internacionais de que o Brasil tem sido signatário, como a Convenção de Ramsar (Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional).
Adicionalmente, tendo em vista os desastres naturais, a manutenção das APPs também protege o patrimônio público e privado e, especialmente, vidas humanas.
O projeto de lei de Código Florestal aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados reduz drasticamente a proteção das áreas úmidas em geral e das florestas inundáveis em particular. Cerca de 20% do território brasileiro é coberto por áreas úmidas; apenas, na Amazônia elas ocupam 1.800.000 km2 (400.000 km2 alagáveis) e no Pantanal 160.000 km2.
O texto conflita diretamente com a Lei nº 7.803 de 18.7.1989 e a resolução 004/85 do Conama que definem como parâmetros de medição da largura de um curso d’água o “nível mais alto”, considerando para efeito de cálculo da média das enchentes ordinárias as cotas máximas anuais referentes às enchentes com período de recorrência igual a três anos, excluindo-se as enchentes com período de recorrência igual ou superior a 20 anos. (ON – GEADE – 003 04/06/01)
Para agravar a situação, a Câmara suprimiu a definição de áreas úmidas (inciso XXIV do Art. 3º), deixando ainda mais vulneráveis tão importantes áreas, sujeitas ao uso inadequado por atividades agropecuárias intensivas.
A Câmara também retirou a necessidade de se proteger uma faixa de largura mínima de 50 metros nas veredas, a contar do espaço brejoso e encharcado (Art. 4º, inciso XI), permitindo a consolidação de ocupações irregulares e deixando-as vulneráveis a novas ocupações e desmatamentos, além de submeter às veredas a efeitos de borda das ocupações adjacentes. É fundamental que na nova proposta legal se recupere a obrigação dessa faixa de proteção no entorno das veredas.
Com a retirada do Art. 4o, § 7o e § 8o, que tratava da obrigatoriedade dos Planos Diretores municipais e das Leis de Uso do Solo manterem as faixas marginais de curso d’água (inciso I do Art. 4o) em áreas urbanas, as populações ficam mais susceptíveis a problemas relacionados com enchentes, escorregamentos e deslizamentos.
Ainda em relação às áreas úmidas, o Art. 6º inciso I retira a possibilidade do Poder Executivo considerar a proteção de áreas úmidas como de interesse social a fim de declarar novas áreas de preservação permanente.
Os potenciais usos de APPs em áreas úmidas merecerem legislação específica e pertinente no Código Florestal, devido sua relevância, especificidade, multiplicidade socioambiental e de tipologias, de serviços ambientais e de biodiversidade.
Proteção dos mangues
No texto aprovado na Câmara dos Deputados, apesar de considerar os manguezais em toda sua extensão como APPs, insere-se uma ressalva quanto aos apicuns e salgados, não os considerando como APPs (§ 3º do Art. 4º). Em função da importância ecológica dos manguezais, apicuns e salgados e de todo o gradiente entre eles e, considerando que a conservação/preservação de apenas um deles não vai garantir a conservação/preservação de (os) outro(s), nem a manutenção da integridade e da funcionalidade dos manguezais, solicita-se o veto do referido parágrafo.
A Câmara dos Deputados manteve o dispositivo que ameaça a proteção dos mangues ao permitir a intervenção ou supressão da vegetação nativa de APPs em locais onde a “função ecológica do manguezal” estiver comprometida. Nesse caso (Art.8º, § 2º), autorizam-se obras habitacionais e de urbanização inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda. Se a função ecológica do manguezal estiver comprometida, ela deve ser recuperada, uma vez que grande parte dos manguezais contaminados tem elevados índices de metais pesados e petróleo. Manter populações de baixa renda nesses locais seria imoral.
Não se pode incluir Área de Preservação Permanente no cômputo da Reserva Legal (RL)
As comunidades biológicas, as estruturas e as funções ecossistêmicas das APPs e das reservas legais (RLs) são distintas. Não faz sentido incluir APP no cômputo da RL como foi mantido no texto aprovado pela Câmara (Art.15).
A Câmara ainda inseriu que no referido cômputo se poderá considerar todas as modalidades de cumprimento da Reserva Legal, ou seja, regeneração, recomposição e compensação.
A SBPC e a ABC sempre defenderam que a eventual compensação de déficit de RL fosse feita nas áreas mais próximas possíveis da propriedade, dentro do mesmo ecossistema, de preferência na mesma microbacia ou bacia hidrográfica. No entanto, o projeto em tramitação torna mais ampla a possibilidade de compensação de RL no âmbito do mesmo bioma, o que não assegura a equivalência ecológica de composição, de estrutura e de função. Mantido esse dispositivo, sua regulamentação deveria exigir tal equivalência e estipular uma distância máxima da área a ser compensada, para que se mantenham os serviços ecossistêmicos regionais.
A principal motivação que justifica a RL é o uso sustentável dos recursos naturais nas áreas de menor aptidão agrícola, o que possibilita conservação da biodiversidade nativa com aproveitamento econômico, além da diversificação da produção. Por isto, na recuperação das RLs degradadas, o possível uso temporário inicial de espécies exóticas não pode se transformar em uso definitivo.
Áreas Rurais Consolidadas
A figura de áreas rurais consolidadas em APPs até a data de 22 de Julho de 2008, e a possibilidade dada na lei aprovada de serem mantidas e regularizadas não se justificam. Desde pelo menos 2001, o desmate dessas áreas para uso alternativo do solo já estava explicitamente proibido, e as mesmas devem ser integralmente restauradas com vegetação nativa para que possam fornecer seus serviços ambientais.
Um dos pré-requisitos para o sucesso da restauração da mata ciliar é o isolamento do fator de degradação. Desse modo, recuperar a faixa marginal concomitantemente com a utilização do espaço pelo gado, como fica permitido pelo Art. 61, impede os processos de recrutamento de mudas e regeneração da vegetação.
A Câmara dos Deputados agravou a situação, ao desobrigar, em propriedades rurais que tenham atividades consolidadas, a recomposição das APPs ao longo de cursos d’água naturais, com largura superior a 10 metros de faixas marginais.
Retirou também o dispositivo que proibia a consolidação de qualquer atividade em APPs em imóveis inseridos nos limites de Unidades de Conservação de Proteção Integral (§ 13 do Art. 62). Complementando, suprimiu o § 14 do mesmo artigo que possibilitava uma maior proteção de vegetações nativas em bacias hidrográficas consideradas críticas.
Restauração das APPs
Outras exceções dizem respeito à obrigação de restaurar. O tratamento diferenciado de poder restaurar extensão menor de APPs deveria ser restrito à agricultura familiar, populações tradicionais e ribeirinhas. Em vista disto deveriam ser suprimidos os § 4º e § 8º do Art. 62.
Concessão de Crédito agrícola a todos os proprietários rurais
A Câmara dos Deputados suprimiu o Art.78º do texto do Senado, que condicionava, após cinco anos de publicação da Lei, o crédito agrícola com a inscrição do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Desta forma, não há mais restrição de crédito ao agricultor que estiver irregular, desestimulando-o a regularização ambiental de sua propriedade. Não é aceitável que seja fornecido crédito ao proprietário que não observe os cuidados ambientais de sua atividade agrícola.
Retirada de exigências para autorização de supressão de vegetação nativa
No Capítulo V, que trata da supressão de vegetação para uso alternativo do solo, a Câmara dos Deputados retirou a necessidade do órgão federal de meio ambiente aprovar a supressão de vegetação em áreas em que existirem espécies ameaçadas de extinção, que constem de lista federal (supressão do inciso IV, § 1° do Art. 26). Nesse mesmo artigo, no § 4°, a Câmara suprimiu os incisos V e VI que exigiam informar, no requerimento de autorização de supressão, o inventário do material lenhoso com diâmetro acima de 30 (trinta) metros e a destinação do material lenhoso, respectivamente, deixando vulnerável o sistema de controle da exploração de espécies florestais nativas e o transporte de madeira.
Avaliações mais aprofundadas que a SBPC e a ABC fizeram ao longo de todo o período de tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional encontram-se disponíveis no site SBPC (www.codigoflorestal.sbpcnet.org.br).
Confiantes na atenção de Vossa Excelência às considerações que aqui relatamos, apresentamos nossas mais respeitosas saudações.
(SBPC)