Em discussão em vários países da América Latina, a regulamentação de uma convenção internacional que determina consulta a povos indígenas quanto a obras ou políticas que possam afetá-los é um dos principais pontos aglutinadores dos índios da região.
Aprovada em 1989 e ratificada ao longo dos 20 anos seguintes por boa parte dos países latino-americanos (o Brasil o fez em 2002), a Convenção 169 da Organização do Trabalho (OIT) é tida como um dos principais trunfos dos movimentos indígenas em suas disputas com os Estados nacionais.
No Brasil, o governo criou em 27 de janeiro um grupo para apresentar uma proposta de regulamentação da convenção. A equipe, que conta com integrantes da Funai (Fundação Nacional do Índio) e de vários ministérios e órgãos governamentais, tem prazo de 180 dias para finalizar seu trabalho, mas pode prorrogá-lo por igual período, se julgar necessário.
Em seminário no início de março que debateu a regulamentação, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, disse que o direito à consulta prévia não pode inviabilizar grandes empreendimentos.
“Nós precisamos das estradas, das hidrelétricas. Não vamos sonhar com um país idílico e romantizado em que nada disso seria necessário”, afirmou.
No entanto, ele disse que o governo “não pensa que o desenvolvimento deva vir a qualquer preço” e que é preciso aperfeiçoar o sistema de consulta a povos indígenas e tribais, em conformidade com a Convenção 169.
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Direito de veto
A maior polêmica sobre a convenção, suscitada por interpretações distintas do texto, gira em torno da seguinte questão: ela garante aos indígenas o direito de vetar obras ou políticas que os impactem?
O texto não menciona a possibilidade de veto, mas afirma que, “quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa”.
Para os movimentos indígenas, o poder de veto deve ser estendido a todos os casos em que se exigir consulta às comunidades.
Segundo Rodrigo de La Cruz, coordenador técnico da Coica (Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), “está claro que o direito à consulta deve ser vinculante”.
Também partidário dessa visão, o doutor em antropologia pela Universidade de Brasília Ricardo Verdum diz que, num cenário de completa divergência de posições entre o governo e uma comunidade indígena sobre uma obra, por exemplo, o impasse poderia ser solucionado por uma votação entre a população impactada. Se a maioria se opuser à construção, caberia então ao governo respeitar a decisão.
Hoje, de acordo com Verdum, o governo desrespeita a convenção e também um artigo da Constituição que determina que comunidades indígenas devem ser ouvidas em casos de aproveitamento de recursos hídricos, pesquisa e lavra de riquezas minerais em suas terras.
Conforme os procedimentos atuais, a consulta aos índios integra o processo de licenciamento ambiental das obras. Cabe à Funai ouvir as comunidades afetadas e posicionar-se sobre o empreendimento.
Para Verdum, porém, por ser um órgão do governo, a Funai está sujeita a pressões políticas e não representa os indígenas de forma adequada.
Ele afirma ainda que, segundo a Convenção 169, povos indígenas e tribais deverão ser consultados quanto a qualquer política que os impacte, como no caso de leis sobre saúde ou educação que tratem os indígenas de maneira diferenciada.
“Trata-se de assegurar o direito à autodeterminação desses povos. Não significa romper com o Estado brasileiro, mas respeitar as várias nações que há dentro do Brasil.”
Promoção do diálogo
No entanto, para representantes da OIT, a convenção não pressupõe o direito de veto.
“O espírito da convenção é promover o diálogo. E assegurar o direito de veto não é uma forma de promover o diálogo”, diz Lélio Bentes Corrêa, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e perito da OIT em aplicação de convenções.
Segundo Corrêa, porém, ainda que não garanta o direito de veto, a convenção exige que governo e empregadores promovam a consulta de boa fé e de forma acessível para os índios.
“Não adianta fazer a consulta em termos técnicos se os representantes dos indígenas não têm formação técnica para discutir em pé de igualdade. A consulta deve ter o objetivo genuíno de atingir uma solução satisfatória para todas as partes envolvidas, ou seja, não pode ser uma mera formalidade.”
O jurista afirma que alguns países latino-americanos já avançaram na implementação correta da convenção. Ele cita uma decisão de 2011 da Suprema Corte da Colômbia, que, valendo-se da convenção e atendendo à demanda de uma comunidade indígena, declarou a inaplicabilidade do atual código de mineração colombiano.
Ele também menciona avanços da legislação no Chile e no Peru e afirma que a própria regulamentação do direito de consulta deve ser objeto de consulta.
No caso brasileiro, segundo o antropólogo Ricardo Verdum, as organizações indígenas querem poder criar uma proposta de regulamentação alternativa à do governo, caso não se satisfaçam com o projeto apresentado.
Ele diz esperar que a regulamentação traga à tona a discussão sobre a criação de um Parlamento dos Povos Indígenas, órgão que discutiria políticas que impactassem vários povos indígenas.
“Uma coisa é o impacto de uma obra local, outra coisa são políticas que impactam vários povos indígenas. Deve ser criada alguma instância nacional onde os povos tenham condições de discutir, debater e apresentar ao Estado sua posição.”
Verdum afirma ainda que, tão importante quanto aprimorar a legislação para atender aos direitos dos indígenas, é garantir que as leis sejam aplicadas corretamente.
Na Bolívia, segundo ele, embora tenha havido nos últimos anos vários avanços institucionais na defesa dos direitos dos índios, conflitos recentes quanto à construção de uma estrada que atravessaria território indígena mostram a dificuldade de tirar as novas leis do papel.
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