Três importantes decisões da Justiça garantiram esta semana a permanência de comunidades indígenas Kaingang, no Rio Grande do Sul, e Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, nas retomadas feitas em territórios de ocupação tradicional. Em duas delas, a decisão dos magistrados é clara: o direito dos índios prepondera sobre direitos privados, ou seja, a vida de um povo vale mais que a propriedade.

Depois de um mês marcado pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara Federal, onde a bancada ruralista propõe a transferência da demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação ambiental do Executivo para o Congresso Nacional, as decisões da Justiça são motivo de alegria para o movimento indígena.

“O direito dos índios sobre terras tradicionalmente ocupadas por suas comunidades é originário, reconhecido pela Constituição Federal e prepondera sobre direitos privados, direitos adquiridos e, inclusive, sobre propriedade registrada em escritura pública”, disse Fernando Quadros da Silva, presidente da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre (RS).

O desembargador manteve decisão que suspendeu a reintegração de posse da Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha, entre os municípios Cacique Doble e Sananduva, noroeste gaúcho. Em 19 de abril do ano passado, o Ministério da Justiça publicou Portaria Declaratória de demarcação da área. No entanto, a Justiça Federal de Erechim determinou em agosto que as terras demarcadas fossem devolvidas ao proprietário.

A procuradoria da Fundação Nacional do Índio (Funai) recorreu, garantindo que a ocupação dos Kaingang é tradicional, conforme estudos antropológicos de identificação e demarcação. O proprietário, por sua vez, lá chegou em 2004. Os indígenas seguem na retomada da área, de onde foram expulsos por frentes colonizadoras no decorrer do século XX.

O último indígena de lá saiu sob tiros em 1972, sendo que documentos de 1889 mencionam a presença dos Kaingang na área, além de relatos passados de geração para geração e anciãos que em Passo Grande se criaram antes da retirada forçada feita pelos latifundiários. A decisão dos desembargadores foi unânime e os índios ficam no local até o processo de reintegração ser julgado pela Justiça Federal de Erechim – a mesma que derrubou a Portaria do Ministério da Justiça.

Para as lideranças Kaingang a vitória é importante, aponta que setores da Justiça estão empenhados em garantir os direitos constitucionais dos indígenas, mas a mobilização não pode parar.

Permanência no tekoha

Outras duas importantes decisões partiram do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3), com sede em São Paulo, envolvendo o povo Guarani Kaiowá. Cerca de 310 indígenas que vivem no tekoha Yvy Katu, em Japorã, poderão permanecer na terra de ocupação tradicional. Há oito anos, os Kaiowá retomaram a área de 260 hectares, que fica dentro da Fazenda Remanso Guaçu.

A decisão deverá ser mantida até que ação de reintegração de posse seja julgada pela Justiça Federal. Yvy Katu faz parte de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado entre Funai e Ministério Público Federal (MPF), que exige o urgente trabalho de identificação e demarcação da terra indígena.

O próprio MPF entrou com recurso no TRF-3 pedindo que os desembargadores suspendessem liminar da Justiça Federal de Naviraí (MS), que determinava a reintegração de posse da área ao suposto proprietário. O desembargador Newton De Lucca, presidente do TRF-3, decidiu atender ao pedido do MPF.

Por dois votos a um, o mesmo TRF-3 decidiu que os Guarani Kaiowá do tekoha Laranjeira Nhanderú, município de Rio Brilhante (MS), devem permanecer na área retomada. A decisão deverá ser mantida até que se faça perícia judicial – estudos antropológicos e fundiários -, requisitada pelo juiz de 1ª instância da Justiça Federal de Dourados.

No entanto, mais uma vez chama a atenção os argumentos dos desembargadores que votaram contra a reintegração de posse e pela retirada dos indígenas: o direito à vida se sobrepõe ao de propriedade; o segundo pode ser compensado financeiramente, já o primeiro não. Além disso, os desembargadores acompanharam as justificativas do MPF: trata-se de direito originário, portanto constitucionalmente os Guarani Kaiowá devem permanecer no local.

TRF-5: julgamento de lideranças Xukuru

Entrou na pauta do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), em Recife (PE), o julgamento do Recurso de Apelação de 35 lideranças do povo Xukuru do Ororubá, condenadas pela Justiça Federal de Pernambuco a penas que variam entre 10 e 13 anos. Os desembargadores votam a questão no próximo dia 17 de abril.

Os indígenas são acusados de praticar, em fevereiro de 2003, crimes contra o patrimônio de fazendeiros invasores e demais ocupantes da terra indígena Xukuru, na Serra do Ororubá – já homologada pela Presidência da República desde 2001.

Horas depois de atentado sofrido pelo cacique Marcos Xukuru, que culminou no assassinato de dois indígenas que o escoltavam, a comunidade se rebelou e decidiu retirar da terra indígena os invasores. Tal como nas decisões do TRF 3 e 4, o cacique Marcos Xukuru espera que os desembargadores em Recife façam justiça e absolvam as lideranças das acusações.

“Meu pai (cacique Xikão) e outros indígenas foram assassinados, eu sofri um atentado com a terra já homologada, meu povo vem de muitos anos de luta e sofrimento pelo território e ainda corremos o risco de prisão. Então a tensão é grande”, declarou o cacique durante a Marcha Xukuru, no ano passado, quando se completou 13 anos do assassinato de cacique Xikão no Bairro Xukuru, em Pesqueira (PE).

Depoimentos não incluídos

Os indígenas, vítimas da espoliação de seu território e morte de suas lideranças, foram parar no banco dos réus e um dos fazendeiros envolvidos no atentado sequer foi denunciado no processo referente aos indígenas mortos.

“Eu espero que seja feita justiça. As investigações feitas sobre o caso deixaram de considerar vários depoimentos, sobretudo os fatos que vitimaram o cacique Marcos, estopim para os eventos seguintes. Espero que os indígenas não sejam punidos, quando são vítimas”, declara a Subprocuradora Geral da República, Raquel Dodge.

Raquel lembra que naquele dia eles visitaram o cacique Marcos, “muito machucado e sedado por uns medicamentos para controlar infecções”; se dirigiram até a Vila de Cimbres, palco do conflito, e na sequência foram conversar com o delegado de Pesqueira, que ia começar as primeiras oitivas, mas desistiu.

“Então Nilmário, o presidente da Funai e eu decidimos colher os depoimentos. Começamos às 22 horas e acabamos no dia seguinte, por volta das 6 horas da manhã. Depois uma comissão foi designada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos”, explica a Subprocuradora.

A questão é que nenhum destes depoimentos – “das testemunhas oculares” – foram considerados pela Justiça Federal. “O que eu espero é que os desembargadores façam justiça e examinem se as provas entregadas foram completas e revelam os meandros do episódio”, pede Raquel Dodge.

FONTE: CIMI – http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6165&action=read