A Crítica – Traduzida como sinônimo de progresso, a Ponte Rio Negro será um desastre para um grupo de pessoas que dependem do transporte aquaviário.
Do ponto de vista simbólico, a ponte é descrita como “uma mordaça na boca do rio”, nas palavras do poeta e músico Celdo Braga. Uma obra inédita no Estado que “quebrou o ritmo das águas”, completa Braga.
A desolação com a ponte pode ser observada nas expressões preocupadas dos trabalhadores das lanchas que fazem a travessia Manaus-Iranduba no Porto de São Raimundo.
Todos estão cientes da queda brusca da demanda de usuários das lanchas que durante décadas transportaram os passageiros de Manaus para Iranduba e demais trajetos a partir deste município.
A aposta dos aquaviários é nos cidadãos que não vão desistir de pegar um barco e se submeter a uma viagem pelo rio que leva 10 minutos. E que, se tiver automóvel próprio, não se importa de deixá-lo no porto de São Raimundo.
Apesar das esperanças, eles sabem que a concorrência é grandiosa. “Acho que vamos ter uma queda de 70% na demanda de passageiros. Mas acredito que muitos vão deixar de barco lancha só no começo, quando tudo é novo. Vão usar a ponte pela curiosidade”, diz João Teixeira Dias, proprietário de lancha.
Incerteza
Alguns donos de lanchas abordados pela reportagem do portalacrítica.com, porém, estavam visivelmente angustiados. Admitiram que não sabem o que vai ser do futuro, especialmente pela falta de um porto fixo do outro lado do rio.
“Se ao menos tivesse um porto no Cacau-Pirêra (distrito de Iranduba) que não fosse improvisado a disputa (com a ponte) seria leal. Mas estamos desamparados. Vai ficar ruim principalmente para os que trabalham aqui no São Raimundo”, relatou Charles Antônio da Silva, membro da Cooperativa de Transporte Fluvial de Manaus.
O trapiche do Porto de São Raimundo recebe 22 lanchas. Atuam ali 50 proprietários, além de auxiliares. A passagem de R$ 5 permite uma renda média de 150 reais por dia, segundo João Teixeira Dias.
De cinco seis passageiros abordados pela reportagem no porto, apenas uma afirmou que estaria disposta a continuar usando as lanchas para fazer a travessia.
“Ainda não sei se vou trocar. A ponte está aí, dá para usar o carro, e eu trabalho em Iranduba. Mas eu gosto de andar de barco. No mesmo em que eu vim agora tinha uma moça que estava falando que não usaria a ponte. Que de barco é melhor porque vai direto para o Centro da cidade”, disse Tatiana Queiroz, 30, proprietário de uma escola infantil em Iranduba, mas moradora de Manaus.
Cinco passageiros de uma mesma lancha com quem a reportagem conversou citaram frases como “estou ansioso”, “dou graças a Deus pela ponte” e “não quero saber mais de lancha”.
Pelos menos três deles – empresários do ramo de cerâmica – disseram que a ponte vai facilitar porque suas viagens são sempre a trabalho.
A gerente administrativa de uma loja Andressa Campos, 22, descreveu de forma simples o que provavelmente será a salvação dos donos das lanchas: “Apenas turistas e pessoas que querem passear continuarão a pegar barco”.
Nostalgia
O poeta Celdo Braga tem uma relação ambígua com a ponte. Ele admite que usará a pontequando houver necessidade “do ofício do dia a dia”, mas que vai preferir pegar uma lancha quando for dar um passeio.
“Não vou usar uma sapopema (raiz de uma das maiores árvores amazônicas, a Samaúma) no lugar do celular para me comunicar. Como ferramenta, os objetos modernos tecnológicos podem ser usados, mas não podemos perder o referencial cultural”, conta.
Celdo Braga relata que um dia vinha passando pelo rio e se deparou com a ponte. Inspirado pela obra, fez uma poesia. A que leva a frase “uma mordaça na boca do rio”.
“A nossa vocação é o universo das águas. Manaus tem 1.675 igarapés poluídos. De repente, o rio Negro, em toda a sua magnitude paisagística, é quebrada por um monte de cimento. Dizem que é progresso, mas será se houvesse um investimento melhor nas embarcações, que elas se tornassem mais potentes, bonitas, elas não atenderia nossas necessidades?”, indaga.
Utilitarista
O jornalista e sociólogo Wilson Nogueira salienta a relação cultural das pessoas com a água. Mas ele minimiza uma possível relação simbólica da água com a prática da travessia do rio Negro. E, por este motivo, para Nogueira, o impacto não será tão significativo.
“Embora aja essa possibilidade de contato com a água, de apreciar o rio, de contemplar, de dar essa relação afetiva, a maioria das pessoas que usa os barcos fazem isso para trabalhar, para estudar, para fazer negócios, ou para visitar parente”, observa.
Para Wilson Nogueira, apenas entre pessoas cuja história de vida já carrega a relação cultural e simbólica com a água sente nostalgia quando esta relação é quebrada.
“Quem morou em beira de rio, quem tem formação sobre a cultura ribeirinha e proximidade com a natureza, quando for preciso, não vai usar a ponte. Vai preferir ir de rio. Mas a maioria das pessoas atravessa para ir e voltar logo. A ponte é utilitarista”, descreve.
A preocupação de Nogueira reside em outro aspecto da ponte: no seu impacto ambiental e estético, que pode se estender à outras áreas do entorno e, futuramente, com a construção de empreendimentos semelhantes em outras municípios e calhas de rio do Amazonas.
“Agora querem resolver o problema do dia a dia com essa ideia de progresso. Há um movimento de fazer ponte em outros rios. Para mim, é uma visão simplista e atrasada de progresso, de que vai facilitar o escoamento”, analisa.
FONTE: A CRÍTICA
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