A tentativa do governo de Mato Grosso de transferir os Xavante da TI Marãiwatséde, sua terra tradicional, para o Parque Estadual do Araguaia foi fortemente rejeitada pelo cacique xavante Damião Paradzane. Ele afirma que sua comunidade espera a conclusão imediata do processo de desintrusão dos que ocuparam a terra ilegalmente.   

Apesar de ter sido homologada em 1998 para usufruto exclusivo do povo Xavante, a Terra Indígena (TI) Marãiwatséde, no município de Alto Boa Vista, a 1.064 quilômetros de Cuiabá, Mato Grosso, ainda abriga mais de seis mil famílias de não-índios, entre fazendeiros e posseiros. Hoje, apenas 15% dos 165 mil hectares de Marãiwatséde são ocupados pelos Xavante, primeiros habitantes daquela área. Para o cacique Damião Paradzane, é chegada a hora de colocar fim no conflito que seu povo enfrenta há mais de quarenta anos, desde que foi retirado de sua terra em 1966.

A polêmica em torno da Terra Indígena Marãiwatséde foi reacesa no último dia 27 de junho, quando foi aprovada e publicada no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso a Lei nº 9.564, de autoria do presidente da Assembleia Legislativa, José Riva (PP), e do deputado Adalto de Freitas (PMDB) autorizando a permuta da TI, com a Fundação Nacional do Índio (Funai) ,por áreas do Parque Estadual do Araguaia. Damião afirma que o ato demonstra desrespeito do governo de Mato Grosso com a sua comunidade. “Não fomos consultados, é uma grande falta de respeito. Marãiwatséde é nossa terra original, não vamos sair daqui, a gente não aceita essa transferência”.

O cacique diz ainda que a tentativa de retirada é uma coisa do século passado. “O governo quer ver morrer mais índios, como aconteceu em 1966? Naquela época morreram mais de 150 índios. Meu pai e meus irmãos morreram de sarampo, porque tiveram contato com o branco. Isso é uma coisa do século passado, hoje a gente não vai mais deixar isso acontecer”. Damião conta que sua comunidade está organizando uma manifestação em Brasília para reivindicar a saída dos posseiros e fazendeiros da TI. “Eu sou pai de família, um também tenho autonomia. Não é só o governador de Mato Grosso que tem autonomia. Vamos defender nosso direito até o fim”.

Lei estadual é inconstitucional

O coordenador adjunto do Programa Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), Raul Silva Telles do Valle, explica que a Lei nº 9.564 é inconstitucional. “O artigo 231 da Constituição Federal diz que é vedada a remoção dos povos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe, epidemia ou interesse da soberania do país, garantido sempre o retorno quando a situação de emergência passar. Ademais, essa situação tem que ser atestada pelo Congresso Nacional, o que não ocorreu nesse caso, já que não há catástrofe, epidemia ou interesse da soberania do país presentes, e a remoção seria definitiva”.

A publicação da Lei º 9.564 gerou uma série de manifestações. Organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais lançaram uma nota de repúdio ao texto dos deputados. No dia 29 de junho, a Funai também se pronunciou contra o ato, informando que “… a Lei estadual não obriga a União ou a Funai a qualquer tipo de troca, visto que não há interesse nem constitucionalidade em tal ato. A Constituição Federal impede expressamente a remoção de grupos indígenas de suas terras tradicionais”.

No dia 1º de julho, o juiz Julier Sebastião da Silva, da 1ª Vara da Justiça Federal de Mato Grosso, determinou a remoção, em até 20 dias, das seis mil famílias de não índios que vivem na TI Marãiwatséde. No despacho, o juiz federal explica que a retirada dos fazendeiros deve ser feita com reforço da Polícia Federal. No dia seguinte, o Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF), em Brasília, determinou a permanência das famílias de não índios em Marãiwatséde, suspendendo a decisão da Justiça Federal de Mato Grosso. De acordo com a decisão do TRF, os produtores vão permanecer no local até que a Funai e o Ministério Público Federal (MPF) apresentem uma solução viável para a retirada das famílias.

Segundo o coordenador regional da Funai em Ribeirão Cascalheira, Denivaldo Roberto da Rocha, o plano de desintrusão da área, feito em parceria entre Funai, MPF, Ibama e Incra, será apresentado até final deste mês.

A história da Marãiwatséde

Nos anos 1960, colonizadores liderados por Ariosto da Riva invadiram o território Xavante instalando um latifúndio de 1 milhão de hectares, conhecido como Fazenda Suiá-Missu, nome do rio que corta a área e deságua no Rio Xingu. Para permitir a ocupação sem a presença dos indígenas, em 1966 foi iniciada a transferência de 250 Xavante para a Missão Salesiana em São Marcos, 400 quilômetros ao sul de Marãiwatsédé. A ação foi executada pela Força Aérea Brasileira (FAB) e pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Em 1992, a AGIP, empresa italiana que se tornou proprietária da Fazenda Suiá-Missu comprometeu-se, após pressões internacionais, a devolver a área ao povo xavante. Enquanto tramitava a formalização do acordo de devolução das terras da Funai com a AGIP, ocorreu um movimento de grilagem da área da fazenda, orquestrada por políticos e fazendeiros do município de São Felix do Xingu e da região, mesmo sabendo que a área estava em processo de regularização como terra tradicional Xavante. O processo de reconhecimento de Marãiwatséde foi concluído em 1998, ano em que foi finalmente homologada. Esse foi o período de maior devastação no interior da TI, hoje conhecida como a mais desmatada da Amazônia brasileira.

Fonte: ISA