HISTÓRIAS DE VIDA – O Pará foi e continua sendo palco de intensa miscigenação por ter recebido vários povos, cada um carregando na bagagem lastro cultural que inclui costumes, hábitos, padrões de comportamento e religião. Os espanhóis, depois dos portugueses, são os imigrantes europeus em maior número no Estado. De acordo com a professora e historiadora Nazaré Sarges, da Universidade Federal do Pará, a maioria dos imigrantes espanhóis veio para o Pará atraída pela economia da borracha no final do século XIX e início do XX.
Mas não foi assim com todos. Uma das exceções é a família de José Maria Losada, que embarcou para o Pará a pedido dos seus avós maternos, Elias e Trinidade, e da tia, Feliciana, que estavam no Estado desde 1904. Os três, profissionais da saúde, vieram trabalhar na Santa Casa da Misericórdia. “A vida estava bem na Espanha. Tínhamos terras, criações, tocávamos em uma banda, mas viemos para ver no que daria”, revela José Maria.
Os pais de seu José Maria, Luiz e Dolores, e seus irmãos, Áurea, Hermitas, Trindade, Dolores e Luiz, deixaram o município de Baños de Molgas, na província de Ourense, em 1950. José Maria, porém, partiu seis meses mais tarde, depois de comprovar ao consulado brasileiro que a perda de partes de dois dedos da mão esquerda não era doença contagiosa. “Precisei provar que foi um acidente com uma ‘bombinha’ estourada na minha mão quando eu tinha seis anos”, explica o espanhol, que nunca teve limitações por conta do incidente. Apesar da dificuldade para embarcar, José Losada, aos 20 anos, veio de forma inusitada. Ele foi um dos passageiros que inaugurou o primeiro voo Roma-Espanha-Brasil, pela empresa Pan Air, que durou oito horas, bem menos do que os trinta dias que sua família levou para chegar ao Pará.
Para sustentar a família, José Losada e o pai montaram um comércio que servia refeições aos estivadores do porto de Belém, o Recreio Marítimo, localizado na avenida Castilhos França com a Presidente Vargas, ao lado da conhecida Casa Inglesa e do Texas Bar. Depois, montaram um bar-lanchonete no antigo Cliper de Nazaré, que funcionou por 15 anos próximo à atual Praça Santuário de Nazaré. Lá circularam importantes personalidades, da política, artistas e músicos, entre outros. Quando o Cliper foi desativado pela prefeitura, seu José e o pai abriram uma nova lanchonete com o dinheiro da indenização. O novo negócio, que ficava ao lado do antigo cinema Ópera, atraía uma grande clientela que consumia até dez quilos de café por dia. Antes de se aposentar, com 38 anos de muito trabalho, José Maria também trabalhou com revenda de peças automotivas.
Como filho mais velho, José Maria conseguiu manter a promessa que tinha feito ao pai, de lhe ajudar a criar os irmãos mais novos. “Eu trabalhava para meus irmãos estudarem e se formarem”, revela seu José, orgulhoso por ter conseguido seu objetivo.
Aos 30 anos, ele casou com a portuguesa e também imigrante Maria da Soledade. O casamento, que já chegou aos 50 anos, gerou as filhas Cristina e Ana Graziela, que lhes deram os netos Felipe, Caio e Ana Beatriz.
Hoje, a família de seu José tem quase 80 integrantes que não perdem uma oportunidade de fazer festas regadas a bacalhau, paella, rabanadas e as tradicionais rosquinhas da “vó Lola”, receita de dona Dolores, mãe de seu José, herdada pelas netas. O preparo das iguarias espanholas fica por conta de dona Maria. Mas ele confessa que não resiste ao pato no tucupi e à maniçoba, que a esposa também cozinha. Seu José acredita ser esta a característica que mais os aproximou do povo paraense: o hábito das festas e reuniões familiares. “Eu gosto muito da vida que levo aqui. Fizemos uma ótima escolha em vir para cá”, confessa o espanhol que já está há 60 anos no Pará.
A família também tem a tradição de passar as férias na ilha de Mosqueiro, distrito a 67 km de Belém, na casa construída pelos avós maternos de seu José. Lá, as filhas e os netos cresceram cercados pela plantas cultivadas por ele e a esposa. Hoje, se orgulha da plantação de macaxeira e das 45 espécies de papoulas que cultiva. “Adoro Mosqueiro. A gente se diverte jogando bola, passeando na praça e comendo tapioquinha”, declara seu José.
Religioso, seu José Maria, logo que chegou ao Pará, tornou-se devoto de Nossa Senhora de Nazaré, e desde então acompanha a procissão do Círio de Nazaré. “Por duas vezes, acompanhei toda a procissão descalço para agradecer graças que alcancei”, revela. Mesmo ainda tendo muitos parentes na Espanha, ele nunca pensou em retornar para sua terra natal. Além de ter prometido ao pai nunca abandonar a família, o espanhol se adaptou e se apegou facilmente à nova terra. “Eu fui muito bem recebido aqui. Por onde passei as pessoas sempre me respeitaram”, confessa.
Propaganda trouxe espanhóis ao Pará
Oriundos em sua maioria da região da Galícia, Andaluzia, Extremadura, os espanhóis vieram para o Pará em busca de oportunidades de uma vida melhor, já que seu país passava por guerras coloniais, crise econômica e escassez de terras cultiváveis. Outra leva expressiva desses imigrantes para o Estado veio na década de 1930.
Nazaré Sarges, historiadora da UFPA, conta que os governantes brasileiros prometiam passagens gratuitas aos imigrantes, mas eles teriam de ser casados e agricultores. Para atrair os espanhóis, o governo investia em propaganda sobre as condições e vantagens do solo paraense. Em 1895, foram editados, em Barcelona, na Espanha, os livros “El Pará” e “Amazónia-1900”, que exaltavam os atrativos do Estado e da região, como o clima, os rios caudalosos, a imensidão de terras, a facilidade da língua e a proximidade da Europa. “Procuravam vender o Pará como a ‘Nueva Jerusalém’, a terra da prosperidade”, relata a historiadora.
Em 1896, 3.168 imigrantes espanhóis chegaram ao Pará. Destes, 1.777 partiram para os núcleos agrícolas e 1.368 ficaram na capital. Ao chegar a Belém, eram direcionados para a Hospedaria do Outeiro e, depois, enviados aos núcleos coloniais de Benjamin Constant, Bragança, Monte Alegre, Ferreira Pena e Santa Rosa, para trabalhar na agricultura, com o compromisso de permanecer no local pelo menos por três anos. “Isto não aconteceu, pois muitos se negaram a ir para esses núcleos e um número expressivo abandonou o núcleo”, relata a professora.
Ela acrescenta que, na cidade, os imigrantes trabalharam como sapateiros, cozinheiros, calceteiros, ferreiros e em trabalhos domésticos. Outros se empregaram em estabelecimentos industriais da capital e do interior ou como criados em casas de famílias.
Segundo a historiadora, os espanhóis preservaram seus costumes e tradições, como as touradas, que ocorriam todos os domingos no Colyseu Paraense, na praça Batista Campos, em Belém, reforçando os laços de identidade com a pátria de origem. “A função, como diziam, era muito frequentada tanto por autoridades, como também por visitantes chegados à cidade. Existia até uma crítica especializada deste lazer”, afirma Nazaré Sarges.
Peças são inspiradas na Amazônia
Manoel Malvar havia acabado de se alistar para servir à Marinha em Portugal quando decidiu buscar um futuro melhor no Pará, aos 18 anos. Nascido na província de Pontevedra, na cidade de Bueu, ele veio com a espanhola Dolores Peres Godoi, parente distante que visitava a Espanha e morava em Belém. Dona Lola, como era carinhosamente conhecida, foi uma segunda mãe para Manoel, que morou com ela no bairro da Campina, até se casar.
“Eu consegui uma carta de chamado e vim em busca de trabalho”, conta Malvar. Apesar da saudade da família e do idioma estranho, seu Manoel conta que não foi difícil se adaptar na nova terra. O calor fez ele se sentir mais à vontade. Para conter um pouco da saudade da Espanha, ele se reunia com alguns patrícios no Centro Galaico, que funcionou até a década de 60, na avenida Nazaré, e na antiga sede da União Espanhola, que funcionava onde hoje está o Memorial dos Povos.
Seu Manolo, como é mais conhecido, teve uma única profissão durante a vida – a marcenaria. Foi com ela que sustentou a família e conquistou tudo o que tem hoje. Com o tempo, ele aperfeiçoou as habilidades de marceneiro e se tornou um verdadeiro artista plástico. A arte de talhar em madeira aprendeu ainda criança com o pai espanhol, também chamado Manoel. “Muitas das minhas peças são inspiradas na Amazônia”, revela seu Manolo, mostrando peças com figuras de índio, da fauna amazônica, e com traços marajoaras.
Muitas peças do artesanato produzido por seu Manolo, como relógios de parede, baús, móveis e esculturas, foram vendidas até para fora do país. Na casa dele, no bairro de Canudos, cada móvel e objeto de decoração tem as mãos do espanhol. Com orgulho, ele conta que já fez trabalhos para prefeituras, palácio do governo, algumas igrejas, como os confessionários e o sacrário da Igreja de São José de Queluz. “Já participei de várias exposições no Pará e na Espanha”, revela o artista, que preza pela riqueza de detalhes nas peças que tira de pedaços de cedro da Amazônia.
O mais velho de cinco irmãos casou-se aos 33 anos com Joveniana Gonçalves, ou dona Flor, como prefere ser chamada, hoje com 72 anos, nascida em Salinas, no nordeste do Pará. Ela era a filha de criação da espanhola que trouxe seu Manolo. “Foi uma paixão que começou logo que cheguei aqui, mas batalhei dez anos para levá-la para o altar”, revela seu Manolo, orgulhoso da união que já dura 56 anos.
Da mistura do espanhol com a paraense nasceram Carmem e Manoel. Ele, filho caçula, nasceu na Espanha, em 1977, quando seu Manolo resolveu voltar para sua “terrinha”, como ele diz. Dona Flor já estava no sétimo mês de gestação. Quando o menino completou um ano, eles voltaram. “A ideia era ficar lá de vez, mas senti falta do calor daqui e tive um grave problema de coluna agravado pelo frio”, lembra Manoel, que só conseguiu resolver a doença com fisioterapia e medicação feitas em Belém por um espanhol. Seu Manolo, aos 76 anos, tem apenas uma neta, Bia, de seis anos, filha de Manoel.
Fonte: Diário do Pará – Espanhóis foram atraídos ao Pará pela borracha (dol.com.br)
Francisco Smith
Muito interessante a matéria. Parabéns.