Puerto Chata é um povoado perdido na região onde o Amazonas começa a cortar a selva. Fica nas margens do Perené, afluente do rio.

Puerto Chata foi fundada por Francisco Sanz, o Paco. Filho de uma índia ashaninca, ele recepciona a equipe do Estado. É piloto de um barco que faz a linha até Atalaya, primeira cidade da selva peruana na beira do Amazonas.

O baixinho Paco e a mulher, Filomena, mantêm um restaurante no barranco do Perené, frequentado por índios ashanincas, pescadores e pequenos negociantes de madeira. Na varanda, Paco aponta para uma balsa que transporta caminhões carregados de cedro e caoba (mogno). “Cada caminhão carrega 34 toras de até 1 metro de diâmetro. Os madeireiros pagam aos índios US$ 2,5 por tora de caoba, madeira nobre. Uma miséria.”

 Paco propõe levar a equipe do Estado até a cidade de Pucallpa. Estima que de Atalaya a Pucallpa serão quatro dias de viagem num barco pequeno. Propõe pernoites em aldeias indígenas e acampamentos de pescadores durante o trajeto.

No restaurante, dois jovens ashanincas chegam para almoçar. O povo ashaninca virou escravo nos seringais no fim do século 19 e início do 20, época de ouro da borracha. “Brasileiro matou muito ashaninca”, diz Paco.

Os ashanincas têm uma relação de respeito com os Rios Ene e Tambo, outros nomes do Amazonas na selva. Acreditam que são abrigo de seres mágicos, os coshoscos ou kíatzis. “Do rio tem que ter temor”, afirma Paco.

Um dos índios que almoçam na casa, Camacho Villa Lobos, balança a cabeça afirmativamente, mas se mantém calado. Os ashanincas são desconfiados. “Esse Paco fala demais”, reclama, depois, Camacho.

O piloto explica a introspecção dos índios. “Eles ainda se assombram com os branquinhos que aparecem. Têm medo da volta dos terroristas.” O grupo guerrilheiro Sendero Luminoso dominou a região nos anos 80. Os ashanincas sofreram nas mãos da guerrilha e do governo. Guerrilheiros mataram índios, soldados mataram índios. E os dois lados, aproveitando o desejo de vingança dos nativos, os usaram para caçar o inimigo.

Paco afirma que o povoado que criou desaparecerá em dois anos, quando vence o acordo que fez com os ashanincas, donos das terras. Pelo acerto, os moradores pagam uma taxa mensal aos índios por casa construída. Os nativos não querem mais renovar o acordo. Os moradores decidiram construir novas casas em Puerto Prado, na junção do Ene com o Perené.

De manhã, entramos no barco de Paco, que tem 26 metros de comprimento, 1,40 metro de largura e capacidade para 40 pessoas sentadas em área coberta. A embarcação inicia viagem com 70 passageiros e sem coletes para todos. “A gente parece animal de carga”, reclama uma mulher.

O Perené tem corredeiras. O barco, pesado, segue com dificuldade. Mais à frente, para num posto policial. É a chance de as mulheres reclamarem da superlotação. O militar apenas ouve.

Sem fiscalização. A aldeia Nueve de Octubre é ponto de pernoite de quem desce o rio, aqui chamado de Ucayali. Os moradores oferecem casas de tábua cobertas de palha, sem paredes, para viajantes amarrarem redes e mosquiteiros – sem eles a noite pode ser infernal. Em uma delas pernoita Oscar Navarro, de 48 anos, servidor do Instituto Nacional de Recursos Naturais, órgão de fiscalização ambiental do Peru. Diz que só ele e dois colegas atuam nesse trecho do rio, numa área do tamanho da França.

Navarro conta que em Pucallpa a madeira ilegal é “lavada” por meio de falsificação de documentos e segue para Lima, de onde é exportada. “Os madeireiros põem pessoas na cabeça do governo para protegê-los”, afirma. Mogno e cedro são as árvores preferidas da máfia. “Os ribeirinhos vendem um tronco de árvore por 15% do valor pago na cidade. Eles dizem que fazem isso por necessidade.”

Pescadores alertam que o trecho até Pucallpa é cheio de bandidos. Paco tenta amenizar. Diz que não há tanto risco assim. De manhã os homens voltam a alertar para assaltos. Um deles diz que não gostaria que os brasileiros sofressem qualquer problema na “grande pátria peruana”.

Jangadeiros. É comum no verão amazônico encontrar ao longo do Ucayali grupos de 10 a 20 pessoas em grandes jangadas. Na manhã de sol intenso, 15 homens tentam, com água pela cintura, arrastar uma tora que se desprendeu da jangada em que viajavam, composta por outras 239. As toras têm cerca de 4o metros de comprimento por 1,5 metro de diâmetro.

O líder do grupo, Marden Vileacorta, de 36, conta que as famílias esperam o verão para cortar madeira, reunir dezenas de troncos em formato de jangada e revendê-las em Pucallpa. É uma atividade ilegal, admite. Os jangadeiros já estão viajando há quase sete semanas.

Enquanto cuida de um bebê de colo, Persi, e de Susi, de 3 anos, Luzmila, descendente de índios de 18 anos, prepara frangos num fogão a lenha em cima da jangada. Única adulta do grupo, é mulher de Roger, um dos 15 contratados para levar as toras.

Não há cobertura para aliviar o sol na cabeça e as duas crianças choram. O grupo ainda terá oito dias de viagem até Pucallpa. O dinheiro que eles vão receber, afirma Vileacorta, garantirá apenas um mês de sustento para cada um dos ocupantes da jangada.

Pescadores. Pucallpa está a mais de 2.300 quilômetros de distância das nascentes do Amazonas. É um dos principais mercados de peixes da região. No porto, o biólogo Roger Albitez, de 31, funcionário do governo peruano, faz anotações na sua prancheta. Verifica quais malhas estão sendo usadas, a quantidade e o tamanho dos peixes.

 Na região, os pescadores utilizam dois tipos de redes, a trompera e a hondera. A primeira tem em média 60 metros de comprimento por 4 de altura. O problema, segundo o biólogo, é que um barco leva até 20 tromperas, formando uma “teia de aranha” na água e não deixando brecha para os filhotes escaparem. A formação dessas teias é proibida.

A hondera tem 160 metros de comprimento. É usada em forma de círculo, com uma ponta amarrada à outra. É uma rede autorizada, mas de uso ilegal quando o tamanho de seus quadrados é menor que 2 polegadas. Muitos pescadores usam redes com buracos de 1,5 polegada.

Quanto falta peixe, a colônia de pescadores se divide. “Tromperos” acusam “honderos” pela escassez e vice- versa. As discussões chegam a resultar em agressões e ameaças de morte.

Reportagem de Leonencio Nossa – O Estado de S. Paulo – http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,mafia-paga-us-25-por-tora-de-mogno,695233,0.htm