O Professor Carlos Fernando Mathias de Souza* elaborou e divulgou alguns artigos sobre o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Alberto Menezes Direito quando do julgamento do processo relativo à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Este blog apresenta o trabalho do professor Carlos Mathias como mais uma contribuição para a formação de uma consciência nacional para a proteção de etnias e de espaços naturais.
Um voto de estadista (I) – 04/03/2010
A Constituição de 1988 dedica o capítulo VIII, do seu Título VIII (da Ordem Social), aos índios (arts. 231 e 232) e o Supremo Tribunal Federal — guardião da Lei Fundamental — tem sido chamado a decidir (e a dirimir) grandes questões e temas, como o que enfrentou, no julgamento da petição 3368-4/RO dizendo do alto interesse nacional e passando pelas terras indígenas. Desse julgado, a merecer todo destaque o voto proferido pelo ministro e professor Carlos Alberto Menezes Direito, do qual, para ser dizer o mínimo, foi um voto de estadista.
Discutiu-se no feito, como se sabe, mais particularmente, a questão da terra indígena, que qualifica a área de Raposa Serra do Sol. A Carta de 1988 é expressa, no caput do art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Tal artigo conta, ademais, com sete parágrafos.
De plano, o schollar e magistrado assinalou a necessidade de definição e do alcance de três figuras, a saber: terra indígena, faixa de fronteira e unidade de conservação, ao entendimento de que somente por meio de tais conhecimentos seria possível entender a extensão dos direitos e prerrogativas postos em conflito. Em síntese magnífica, mestre Carlos Alberto Direito consigna: “Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica de essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição”.
E, observa que de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as. Ressalta o ilustre jurista e juiz que o termo terra indígena que qualifica a área de Raposa Serra do Sol deve-se à Lei nº 6.001, de 19.12.73 (Estatuto do Índio), que em seu Título III cuidou de definir e classificar as terras dos índios, abrindo, logo no art. 17, com a definição: “reputam-se terras indígenas (…).
Observa, nesse ponto, o notável ministro (fazendo cotejo entre a letra do Estatuto em destaque e a definição de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, contidas nos §§ 1º e 2º do art. 231 da CF): “Ainda que a Constituição não tenha se utilizado do termo na sua exatidão, o tratamento detalhado que dedicou à questão dos índios e de suas terras suplanta o modelo do Estatuto e faz dela a sede por excelência do estatuto jurídico das terras indígenas, praticamente dispensando outros regramentos”.
E ilustra a observação assinalando que não há dúvida de que a referência feita no caput do art. 231 a terras que os índios tradicionalmente ocupam é a definição primária de terras indígenas. Diz o professor que, “sendo seus principais elementos constituídos pelo advérbio “tradicionalmente” e pelo verbo “ocupam”, é o significado destes que deve orientar a identificação espacial das terras indígenas”, isto é, terras ocupadas pelos índios, não as terras que ocupavam em tempos idos e não mais ocupam.
O marco para a determinação da ocupação indígena é a data de 5 de outubro de 1988, que é (consigne-se óbvio) a data da promulgação da Constituição de 1988. Em outras palavras, terras indígenas são as ocupadas pelos índios quando da promulgação da Carta. Traz abono de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no sentido de que a correta extensão da proteção iniciada pela Constituição de 1988 exige, pois que a presença dos índios seja verificada na data de sua promulgação, logo, a ocupação é um fato a ser apurado.
Em segundo lugar, as terras em destaque são as ocupadas tradicionalmente pelos indígenas. Lembra o magistrado, agora com apoio em José Afonso da Silva, que o advérbio tradicionalmente não deve ser entendido como referente a uma ocupação desde tempos mais que pretéritos, uma ocupação imemorial. E esclarece que esse modo de ocupação, por sua vez, foi definido na própria Constituição, no § 1º do art. 231.
Como reforço, diz o ministro que “o caráter permanente da habitação já mostra que a referida desvinculação da ideia de posse imemorial não pode retirar do advérbio “tradicionalmente”, de forma absoluta, toda consideração à temporaneidade da ocupação. Alguma expressão pretérita deve subsistir ou o adjetivo “permanente” (que, segundo o Aurélio, é 1. o que permanece, contínuo, ininterrupto, constante; 2. duradouro, durável; 3. tem organização estável) não faria nenhum sentido”.
Conclui nesse ponto o voto que “terras que os índios tradicionalmente ocupam são, desde logo, terras já ocupadas há algum tempo pelos índios no momento da promulgação da Constituição. Cuida-se ao mesmo tempo de uma presença constante e de uma persistência nessas terras. Terras eventualmente abandonadas não se prestam à qualificação de terras indígenas, como já afirmado na Súmula nº 650 deste Supremo Tribunal Federal. Uma presença bem definida no espaço ao longo de certo tempo e uma persistência dessa presença, o que forma a habitação permanente outro fato a ser verificado.”
Como variação do tema (para usar uma linguagem de sabor musical), mestre Carlos Alberto Direito propõe que se adote como critério constitucional não a teoria do indigenato, mas, sim, a do fato indígena, registrando que “a aferição do fato indígena em 5 de outubro de 1988 envolve uma escolha que prestigia a segurança jurídica e se esquiva das dificuldades práticas de uma investigação imemorial da ocupação indígena.”.
A habitação permanente, contudo, não é o único parâmetro a ser utilizado na identificação das terras indígenas. Observa o ministro que, “se a teoria do fato indígena dispensa considerações sobre a idade da ocupação, exige, repito, a demonstração da presença constante e persistente dos índios na área em questão, o que é tarefa dos documentos produzidos nos processos de regularização (…).” E, prossegue, “se o problema das terras indígenas há de ser resolvido com base no fato indígena, como aqui se propõe, os procedimentos de identificação e demarcação devem servir pra demonstrá-lo, tal fato está sujeito a observação, o que pode variar são os instrumentos e métodos a serem utilizados para essa finalidade. A mim parece que esses instrumentos e métodos podem ser definidos pela antropologia. No entanto, essa ciência não pode se basear apenas em opiniões, conjecturas e, especialmente generalização. Mas é de ser considerada também a participação de outros especialistas (…). Como já ressaltado, o procedimento destinado à apuração no fato indígena, isto é, a presença indígena em 5.10.1988, com sua respectiva extensão, está determinada com base nas suas referidas expressões.” Outros tópicos do extraordinário voto, por óbvio, merecem também atenção, o que, contudo, não cabe no espaço deste artigo.
Um voto de estadista (II) – 08.03.2010
Ainda sobre o excepcional voto proferido pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito no processo referente à demarcação das terras da Raposa Serra do Sol (Petição nº 3.368-4/RO), cumpre examinar aspectos que passam pelo direito internacional público, e, mais particularmente, com referência à “Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, de 13 de setembro de 2007.
Com a acuidade que lhe era peculiar, o “justice” brasileiro aponta ambiguidades no diploma e em um texto (com pretensão teórica, para se dizer o mínimo) sobre ele.
Observa o jurista Carlos Alberto Direito que “a despeito da ambiguidade da redação da Declaração, veja-se, por exemplo, o que dispõe o seu art. 46, 1, já seriamente mitigado pelo item 3, o preâmbulo e os demais artigos intentam claramente conferir aos povos indígenas a qualificação de nações, dotadas de autogoverno e autodeterminação (arts. 3º, 4º, 6º e 12, in fine), com desprezo das fronteiras (art. 36, 1) e do sistema representativo dos Estados-Membros (art. 32)”.
E, diz mais Mestre C. A. Direito sobre o que se poderia designar de um certo cultivo de ambiguidades, ao referir-se a texto de autoria de James Anaya (Relator Especial da ONU para Direitos Indígenas), em sua obra Los pueblos indígenas en el derecho internacional (Madrid: Editorial Trotta, 2005). Para o ministro a característica do texto em destaque é, reprise-se, a ambiguidade.
Em outras palavras, aponta, em seu voto, que tais textos dão conta “os receios de uma indevida extensão dos direitos indígenas em direção a uma autonomia frente ao Estado do qual são súditos é, longe de uma radicalização do discurso utilizado pelos críticos da Declaração, um anseio de alguns setores da comunidade internacional”. E, prosseguindo, registras: “Não é à toa que alguns Estados-Membros como Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Estados Unidos, embora tenham participado e contribuído ativamente nos trabalhos que resultaram na Declaração, se recusaram a votar favoravelmente, tendo destacado a necessidade de se diferenciar autodeterminação externa de autodeterminação interna. Esta última é admitida, de modo a resguardar a representatividade das comunidades indígenas no plano internacional aos órgãos do Estado-Membro na qual se insere.”
Ademais, com a objetividade e a clareza que lhe eram características, registra em seu douto voto: “(…) ao contrário do que sustentam alguns defensores de um caráter absoluto dos direitos indígenas, estes são, em verdade, uma das diversas expressões do interesse público de âmbito nacional. À nação brasileira interessa, sem dúvida, a proteção e a preservação dos interesses indígenas, mas interessa também a preservação do meio ambiente e da segurança de nossas fronteiras além de outros interesses públicos representados pela União, como prevê literalmente o art. 231 da Constituição da República. É importante identificar tais interesses para que o estatuto jurídico das comunidades indígenas possa ser de uma vez por todas definido considerando a disciplina constitucional”.
Com respeito à proteção do meio ambiente e da faixa de fronteira, ressalta o ilustre Ministro que ela também é matéria que decorre do texto constitucional, sendo expresso em que “haverá, nesses casos, mais uma afetação específica da área em discussão, a gerar uma superposição de afetações. Essa dupla (terra indígena + unidade de conservação) ou tripla afetação (terra indígena + unidade de conservação + faixa de fronteira) deve, portanto, ser resolvida não pela sucumbência frente aos direitos indígenas, mas por uma conciliação das prerrogativas aparentemente em conflito”.
Lembra, no particular, o princípio da unidade da Constituição, que é chamado para resolver antinomia (no caso aparente) entre situações como a do direito dos índios, a importância estratégica da faixa de fronteiras e o valor do meio ambiente.
E, com sua enorme autoridade, preleciona: “A Constituição é a síntese de uma miríade de anseios das mais diversas naturezas. Há, portanto, uma pluralidade de interesses acolhidos no texto constitucional do tipo racional-normativo. Ao mesmo tempo, essa diversidade forma um todo unitário que vem a ser o fundamento de toda a ordem jurídica e também o fundamento de todo o sistema que, como tal, não admite nem a instabilidade nem a autonegação.
O objetivo norteador do princípio da unidade é, assim, o equilíbrio entre todos os interesses que compõem uma rede de interdependência recíproca, a ordem constitucional.”
Logo após essas importante considerações, enfatiza: “o que não deve ser admitido é a continuidade de confrontos entre órgãos federais pela administração direta, ou não, de grandes áreas do território nacional. Não cabe aqui nenhuma forma de radicalismo. Devem ser afastados, por isso, argumentos que, de um lado. só enxergam o absolutismo dos direitos indígenas, com a permanência incontestada e incontestável do usufruto exclusivo e, de outro, não aceitam nada além de um quase confinamento da unidade de conservação”
E, vendo o direito sob a óptica de um estadista (e despiciendo seria assinalar que os juízes também são homens de Estado), sintetiza: “o Estatuto Jurídico das Terras Indígenas não se reduz a um tudo pode para os índios e um nada pode para a defesa do interesse público na sua mais ampla perspectiva. É um estatuto complexo, sofisticado, que consegue ao mesmo tempo cumprir a determinação constitucional de proteção e preservação dos índios e da cultura indígena e assegurar a satisfação dos interesses públicos de ordem nacional, na mais pura tradição brasileira de cordialidade e conciliação.
Tal Estatuto se caracteriza pelo usufruto exclusivo dos índios que, todavia, estará sujeito às condições que ora são definidas, no campo da segurança nacional e da preservação do meio ambiente.”
É preciso, pois, enfatizar — como o fez Mestre Carlos Alberto, em seu antológico voto-vista — que se impõe conciliar sob a óptica harmoniosa das previsões constitucionais aquilo que garante aos índios reconhecimento a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam (e, mais precisamente, que ocupavam na data da promulgação da Carta de 1988, isto é, em 5 de outubro de 1988 — fato indígena), consoante a inteligência do art. 231, a que assegura, a todos, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, com dever imposto, tanto ao poder público quanto à coletividade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225) e, ainda, o dever de preservação dos bens da União, entre os quais as terras devolutas indispensáveis à devesa das fronteiras (CF, art. 29, II).
Foi com esteio (em particular) em tais disposições da Constituição, de par com sólida doutrina jurídica, bem como com o suprimento de estudiosos outros (e, mais assinaladamente, de designados cientistas sociais e antropólogos), que Mestre Carlos Alberto Direito, apoiado, ainda, no princípio da unidade constitucional, proferiu seu voto, que acabou (em termos práticos) sendo o condutor na solução do litígio.
Não se pode olvidar, ademais, a sua autêntica tábua-síntese, contendo condições (a rigor, salvaguardas) decorrentes (ou melhor, impostas), constitucionalmente, no concernente ao usufruto dos índios sobre suas terras.
São, ao todo, dezoito condições a merecerem, cada qual, apreciações especiais e (ou) específicas.
Um voto de estadista (III) – 15/03/2010
O voto do Ministro Carlos Alberto Direito, na questão que ficou conhecida como a da Raposa Serra do Sol (Petição nº3.368-4/RO), apoiado, entre outros fundamentos, no princípio da unidade da Constituição (harmonizando as disposições constitucionais, em particular, sobre terra indígena, faixa de fronteira e unidade de conservação) ofereceu a perfeita inteligência (sob a óptica do direito) do art. 231 da Lei Fundamental de 1988.
O notável voto (que deve ser considerado não só obra de um notável jurista, mas também de um estadista), concluiu por julgar parcialmente procedente a ação popular “para que sejam observadas as seguintes condições impostas pela disciplina constitucional ao usufruto dos índios sobre suas terras (segue-se o enunciado de 18 condições, que podem (e devem) ser consideradas autênticas salvaguardas).
A primeira delas é a seguinte: “O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, interesse público da União, na forma de lei complementar”.
De fato, é expresso o §6º do art. 231 da Carta, em referência: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
O velho brocardo jurídico diz que in claris non fit interpretatio e, na realidade, a clareza do texto constitucional, ao ressalvar o interesse público da União, segundo dispuser lei complementar, no referente, inclusive, à exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos, existentes nas terras indígenas, dispensaria, por si, maiores comentários.
A segunda condição é expressa em que: “O usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional”.
A Constituição é de clareza solar, ao dispor, em seu art. 49, inciso XVI, que é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e a lavra de riquezas minerais.
Ainda como variação do tema, tem-se a terceira condição que diz que “o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra de recursos minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional”.
Por outro lado, sabe-se bem que as jazidas (em lavra ou não) e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, sabido, ademais, que tanto a pesquisa quanto a lavra de recursos minerais somente podem ser efetuadas mediante autorização (ou concessão), conforme o caso, da União.
Observe-se, de outra parte, ser de fácil compreensão (de par com outras considerações que são extraídas – é claro – da Constituição) a condição IV, ao prescrever que “o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira”. De passagem, anote-se que na condição faz-se distinção entre garimpagem e faiscação que, em geral, tem-se por expressões sinônimas.
Em verdade, quando se diz garimpagem a referência é a exploração de aluviões auríferas e de pedras preciosas, enquanto faiscação (ato de faiscar) diz-se mais particularmente da procura, entre a areia das minas lavradas, restos de ouro ou de diamante.
A quinta condição diz de perto com a própria defesa nacional, (passando, obviamente, pelas Forças Armadas), e, ainda, com a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas com o mesmo escopo.
Eis o seu teor: “O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai”.
A Constituição de 1988 dedica o seu Título V à defesa do Estado e das instituições democráticas.
Assim, não seria crível, por exemplo, que a defesa do país (ou da Pátria) da qual se desincumbem as Forças Armadas, pudesse ficar condicionada a consultas às comunidades indígenas ou à Funai.
Todos, sem exceção (e aí não se pode distinguir índios de não índios) têm o dever de ser empenhar nas ações em prol da defesa nacional.
Ademais, a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal, nos precisos termos de suas atribuições constitucionais e legais, está garantida (e seria até incompreensível se não fosse assim).
Foi expressa, no particular, a condição VI: “A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai”.
Naturalmente, por outro lado (e, desnecessário seria o registro), a ocupação das terras indígenas não se destina a deixá-los, absolutamente, isolados do país (o que seria um absurdo) e tampouco implica na impossibilidade da União instalar seus equipamentos públicos, bem como implantar serviços, tais como os de educação e de saúde, por meros exemplos.
Assim, a condição de número VII deixa claríssimo que “o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação”.
Anote-se, agora, que a Constituição de 1988, na linha da proteção aos direitos fundamentais, ditos de terceira geração, agasalha (pela vez primeira, na história constitucional brasileira) a proteção ao meio ambiente.
É expressa a Lei Maior, no comando do seu art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Em tal defesa, todos (isto é, sem qualquer exceção) têm o dever, entre outros, de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas bem como proteger a fauna e a flora e agir contra práticas que possam comprometer o meio ambiente.
A salvaguarda nº VIII, vem ao encontro desse dever – imposto a todos – da preservação em referência. Ei-la: “O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como à caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”.
Mais 10 outras condições estão expressas nesse voto de estadista, a merecerem, também (consigne-se o óbvio) atenção.
Um voto de estadista (IV) – 22/03/2010
A proteção ao meio ambiente, uma das diretrizes básicas da Constituição de 1988 (que lhe dedica todo um capítulo – o VI, do Título VIII, que, como se sabe cuida da Ordem Social) é objeto de três das dezoito condições referentes ao usufruto dos índios sobre suas terras, expressas no extraordinário voto do magistrado e professor Carlos Alberto Menezes Direito (Petição 3.368-4/RO).
A oitava, como bem sabido, preocupou-se com o usufruto dos índios em área afetada por unidades de conversão, deixando claro que ele é restrito ao ingresso, trânsito e permanência (bem como à caça, pesca e extrativismo vegetal), tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficou sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
E, ainda a tal Instituto (é o que se extrai da letra expressa da condição de nº IX) cabe responder pela administração da área da unidade da conservação também afetada pela terra dos índios com a participação das comunidades indígenas da área em caráter apenas opinativo, levando-se em conta suas tradições e costumes, podendo, para tanto, contar com a consultoria da FUNAI.
Desnecessário gastar-se muita tinta e letra para dizer do alcance de tais manifestações que têm caráter apenas opinativo e tampouco assinalar que poder é verbo que, em direito, indica mera faculdade.
Outra coisa, contudo, é o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios no restante da área de terra indígena (que não envolva espaço definido como unidade de conservação, repise-se o óbvio).
Em tal caso, coerentemente, quem deve estabelecer as condições é a FUNAI, como, aliás, está expresso na décima primeira condição.
Por outro lado, ficou defesa a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza, por parte das comunidades indígenas, no particular.
Ademais, pela condição enunciada de número XIII, também não poderá ser cobrada ou exigida tarifa (ou quantia de qualquer natureza), em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia e instalações (ou quaisquer equipamento outros) colocados a serviço do público.
Por outra parte, recorde-se que, a teor do art. 231, § 2º, da Constituição, as terras indígenas destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Ipso facto, não pode haver qualquer ajuste (arrendamento, por exemplo) que restrinja o pleno exercício da posse direta pelos índios.
Tal condição foi estabelecida, de modo inequívoco, no item XIV das salvaguardas, diga-se assim: “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973)”.
Ainda com base no art. 231, § 2º, da Lei Fundamental de 1988, combinado com a Lei nº 6.001/73, § 1º, foi enunciada a condição XV, que estabelece: “É vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa”.
Nas condições em tela, não foi descurada, naturalmente, a plena isenção tributária (aproximando-se até de uma imunidade), sobre os bens do patrimônio indígena, que passam obviamente, pelo usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas.
Assim, não cabe a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros. É o que está na condição que tomou o nº XVI.
Como é de sabença geral, o voto de Mestre Carlos Alberto Direito, com apoio na Constituição, acolheu a tese do fato indígena, isto é, a ocupação das terras que os índios tradicionalmente ocupavam e estavam ocupando em 5 de outubro de 1988 (evidentemente, a data da promulgação da Carta de 1988), e não a do indigenato.
Uma vez demarcadas as terras indígenas, não podem – é natural – ser ampliadas, até mesmo em atenção à certeza e segurança jurídicas, apanágios do direito.
Assim, a condição do nº XVII fixou: “É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”.
Por último, tem-se a condição XVIII, do voto de estadista, que tão bem harmonizou os mandamentos constitucionais, em particular, sobre o usufruto das terras indígenas, a proteção ao ambiente e as terras de fronteira e, ainda, sem descurar disposições essenciais da legislação infraconstitucional – como não poderia deixar de ser.
Nunca é demasiado acentuar que a Constituição define os bens da União, em seu art. 20, entre os quais “as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei” (inciso II); “os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais” (inciso III); “as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países (…)” (v. inciso IV); “os recursos minerais, inclusive os do subsolo” (inciso IX), e “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (inciso XI).
Sobre essas últimas citadas terras, os índios têm a posse permanente, assegurado-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, a teor do art. 231 da Lei Maior, e, em particular, do seu § 2º, repita-se uma vez mais.
Acrescente-se que a Constituição prescreve, no seu art. 231, § 4º, que essas terras (da União, repita-se) são inalienáveis e indisponíveis e, de igual modo, os direitos que os indígenas têm sobre elas são imprescritíveis. Em outras palavras, essas terras da União, ocupadas pelos índios (daí dizer-se terras indígenas) por eles devem ser utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais, necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Daí terem os indígenas a posse.
No exercício dessa posse permanente, cabe-lhes, ainda, o usufruto exclusivo das riquezas do solo (e não, evidentemente, das do subsolo) e dos rios e lagos nelas existentes.
Tudo o que se referir a aproveitamento de recursos hídricos, pesquisa e lavra das riquezas minerais, somente pode ser efetivado mediante autorização do Congresso Nacional.
Fácil, pois, entender-se a décima oitava condição, que, com apoio, inclusive, no art. 231, § 4º, da CF, diz que “os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.”
*Carlos Fernando Mathias de Souza é Vice-reitor Acadêmico da Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis), professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), vice-presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil.
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